Liminaridade
As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos, naquelas várias sociedades que ritualizam as transições sociais e culturais.
Assim, a liminaridade frequentemente é comparada à morte, ao estar no útero, à invisibilidade, à escuridão, à bissexualidade, às regiões selvagens e a um eclipse do sol ou da lua.
As entidades liminares, como os neófitos nos ritos de iniciação ou puberdade, podem ser representadas como se nada possuíssem. Podem estar disfarçadas de monstros, usar apenas uma tira de pano como vestimenta ou aparecer simplesmente nuas, para demonstrar que, como seres liminares, não possuem “status”, propriedade, insígnias, roupa mundana indicativa de classe ou papel social, posição em um sistema de parentesco, em suma, nada que as possa distinguir de seus colegas neófitos ou em processo de iniciação.
Seu comportamento é normalmente passivo e humilde. Devem, implicitamente, obedecer aos instrutores e aceitar punições arbitrárias, sem queixa. É como se as pessoas em situação de liminaridade fossem reduzidas ou oprimidas até a uma condição uniforme, para serem modeladas de novo e dotadas de outros poderes, para se capacitarem a enfrentar sua nova situação de vida.
Os neófitos tendem a criar entre si uma intensa camaradagem e igualitarismo. As distinções seculares de classe e posição desaparecem, ou são homogeneizadas.
Nas iniciações com longo período de reclusão, tais como os ritos de circuncisão ou a entrada em sociedades secretas, há frequentemente uma rica proliferação de símbolos liminares. Assistimos, em tais ritos, a um “momento situado dentro e fora do tempo”, dentro e fora da estrutura social profana, que revela, embora efemeramente, certo reconhecimento de um vínculo social generalizado que deixou de existir, e contudo simultaneamente tem de ser fragmentado em uma multiplicidade de laços estruturais.
São os laços organizados em termos ou de casta, classe ou ordens hierárquicas, ou de oposições segmentares, nas sociedades onde não existe o Estado. É como se houvesse neste caso dois “modelos” principais de correlacionamento humano, justapostos e alternantes.
O primeiro é o da sociedade tomada como um sistema estruturado, diferenciado e frequentemente hierárquico de posições político-jurídico-econômicas, com muitos tipos de avaliação, separando as pessoas de acordo com as noções de “mais” ou “menos”.
O segundo, que surge de maneira evidente no período liminar, é o da sociedade considerada como uma comunidade não estruturada, ou rudimentarmente estruturada e relativamente indiferenciada, ou mesmo comunhão, de indivíduos iguais que se submetem em conjunto à autoridade geral dos anciãos rituais. Prefiro a palavra latina “communitas” à comunidade, para que se possa distinguir esta modalidade de relação social de uma “área de vida em comum”.
A distinção entre estrutura e communitas não é apenas a distinção familiar entre “mundano” e “sagrado”, ou a existente por exemplo entre política e religião. Certos cargos fixos nas sociedades indígenas têm muitos atributos sagrados; na realidade toda posição social tem algumas características sagradas. Porém, este componente “sagrado” é adquirido pelos beneficiários das posições durante os ritos de passagem, graças aos quais mudam de posição.
Algo da sacralidade da transitória humildade e ausência de modelo toma a dianteira e modera o orgulho do indivíduo incumbido de uma posição ou cargo mais alto. Não se trata simplesmente de dar um cunho geral de legitimidade às posições estruturais de uma sociedade. É antes uma questão de reconhecer um laço humano essencial e genérico, sem o qual não poderia haver sociedade.
A liminaridade implica que o alto não poderia ser alto sem que o baixo existisse, e quem está no alto deve experimentar o que significa estar em baixo. Sem dúvida um pensamento deste tipo esteve presente na base da decisão do príncipe Phillip, anos atrás, de mandar o filho, o herdeiro presuntivo do trono britânico, para uma escola no meio da floresta na Austrália, por determinado tempo, a fim de que pudesse aprender a “levar uma vida dura”.
De tudo isso, concluo que, para os indivíduos ou para os grupos, a vida social é um tipo de processo dialético que abrange a experiência sucessiva do alto e do baixo, de communitas e estrutura, homogeneidade e diferenciação, igualdade e desigualdade.
A passagem de uma situação mais baixa para outra mais alta é feita através de um limbo de ausência de “status”. Em tal processo, os opostos por assim dizer constituem-se uns aos outros e são mutuamente indispensáveis.
Ainda mais, como qualquer sociedade é composta de múltiplas pessoas, grupos e categorias, cada uma das quais tem seu próprio ciclo de desenvolvimento, num determinado momento coexistem muitos encargos correspondentes a posições fixas, havendo muitas passagens entre as posições. Em outras palavras, a experiência da vida de cada indivíduo o faz estar exposto alternadamente à estrutura e à communitas, a estados e a transições.
TURNER, Victor [1969]. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.
Drama Social
Dramas sociais representam sequências de eventos sociais, que, vistas respectivamente por um observador, podem ser mostradas como tendo uma estrutura.
O estudo de estruturas temporais envolve o estudo do processo comunicativo, incluindo fontes de pressão para se comunicar dentro de e entre grupos. Isto leva inevitavelmente ao estudo dos símbolos, signos, sinais e marcas, verbais ou não verbais, que as pessoas empregam para alcançar metas pessoais e do grupo.
Dramas sociais são unidades de processo anarmônico ou desarmônico que surgem em situações de conflito. Tipicamente, eles possuem quatro fases de ação pública observáveis. São elas:
1. A ruptura de relações sociais formais, regidas pela norma, ocorre entre pessoas ou grupos dentro do mesmo sistema de relações sociais, seja uma aldeia, chefatura, escritório, fábrica, partido ou distrito político, igreja, departamento de universidade, ou qualquer outro sistema, conjunto ou campo de interação social durável.
Tal ruptura é sinalizada pelo rompimento público e evidente, ou pelo descumprimento deliberado de alguma norma crucial que regule as relações entre as partes. Burlar uma norma deste tipo é um símbolo claro de dissidência. Uma violação dramática pode ser praticada por um indivíduo, certamente, mas ele sempre age, ou acredita agir, em nome de outros indivíduos, estejam eles cientes disto ou não. Ele se vê a si mesmo como um representante, e não como um agente solitário.
2. Após a ruptura de relações sociais formais, regidas pela norma, vem uma fase de crise crescente, durante a qual — a não ser que a ruptura possa ser rapidamente isolada dentro de uma área limitada de interação social — há uma tendência de que a ruptura se alargue, ampliando-se até se tornar tão coextensiva quanto uma clivagem dominante no quadro mais amplo de relações sociais relevantes ao qual as partes conflitantes ou antagônicas pertencem.
Entre os Ndembu, povo da região da África Central, por exemplo, a fase de crise expõe um padrão de intriga faccional corrente dentro do grupo, aldeia, vizinhança ou chefatura social relevante, até então oculta e conduzida de modo privado; e sob ela fica clara a estrutura social Ndembu básica, menos plástica, mais durável, mas que, ainda assim, muda gradualmente, constituída de relações que possuem um alto grau de constância e consistência — sustentadas por padrões normativos estabelecidos no decorrer de regularidades profundas de condicionamento, treinamento e experiência social.
Mesmo debaixo dessas mudanças estruturais cíclicas, outras mudanças na ordenação das relações sociais emergem nos dramas sociais — como, por exemplo, aquelas que resultam da incorporação dos Ndembu na nação da Zâmbia, no continente africano e no mundo todo.
3. Na fase da ação corretiva, com o intuito de limitar a difusão da crise, certos “mecanismos” de ajuste e regeneração, informais ou formais, são rapidamente operacionalizados por membros de liderança ou estruturalmente representativos do sistema social perturbado.
Os tipos e a complexidade de tais mecanismos variam de acordo com fatores como a profundidade e importância social compartilhada da ruptura, a inclusividade da crise, a natureza do grupo social no qual ocorreu a ruptura e o grau de sua autonomia no que se refere a sistemas de relações sociais mais amplos ou externos. Eles podem abranger desde conselhos pessoais e mediação ou arbitragem informal até mecanismos legais e jurídicos formais, e, para solucionar certos tipos de crises ou legitimar outras formas de resolução, a performance de ritual público.
É nesta fase corretiva que tanto técnicas pragmáticas quanto a ação simbólica alcançam sua mais plena expressão. Pois aqui, a sociedade, grupo, comunidade, associação, ou seja qual for a unidade social, está em seu momento mais “autoconsciente” e pode atingir a clareza de pensamento de uma pessoa encurralada, lutando pela vida.
A regeneração também possui seus traços liminares e, assim, fornece uma réplica e uma crítica distanciada dos eventos que compuseram e levaram à “crise”. Esta réplica pode se dar no idioma racional de um processo judicial, ou no idioma metafórico e simbólico de um processo ritual, dependendo da natureza e da gravidade da crise.
Quando a correção falha, geralmente há uma regressão à crise. Neste ponto, a força direta pode ser utilizada nas formas variadas de guerra, revolução, atos intermitentes de violência, repressão ou rebelião. Entretanto, onde a comunidade perturbada é pequena e relativamente fraca, em face da autoridade central, a regressão à crise tende a se tornar uma questão de faccionalismo endêmico, pungente e latente, sem a presença de confrontos agudos e abertos, entre partes consistentemente distintas.
4. A última fase consiste seja na reintegração do grupo social perturbado ou no reconhecimento e na legitimação social do cisma irreparável entre as partes em conflito — no caso dos Ndembu, isto frequentemente significa a separação de uma parte da aldeia das demais.
Com frequência sucedia que, após um intervalo de vários anos, uma das aldeias assim formada promovesse um ritual importante para o qual membros da outra eram expressamente convidados, registrando, desta forma, uma reconciliação em um nível diferente de integração política.
Do ponto de vista do observador científico, esta quarta fase — do clímax, solução ou resultado temporário — é uma oportunidade para se fazer o balanço. Ele pode agora analisar o continuum sincronicamente, por assim dizer, neste momento de cessação do drama tendo já levado totalmente em consideração o seu caráter temporal representando-o por meio de construtos apropriados.
No caso específico de um "campo político", por exemplo, pode-se comparar o ordenamento das relações políticas que precederam a disputa pelo poder que irrompeu em um drama social observável com a fase corretiva subsequente. A natureza e a intensidade das relações entre as partes e a estrutura do campo total, ter-se-ão modificado.
Pode-se descobrir que oposições tornaram-se alianças, e vice-versa. Relações assimétricas podem ter-se tornado igualitárias. Status elevado pode ter-se tornado status baixo, e vice-versa. O novo poder terá sido canalizado para o antigo, e novas e antigas autoridades defenestradas. A proximidade terá se transformado em distância, e vice-versa. Partes anteriormente integradas ter-se-ão segmentado; partes anteriormente independentes ter-se-ão fundido. Algumas partes não mais pertencerão ao campo, outras o terão adentrado.
Relações institucionalizadas ter-se-ão tornado informais; regularidades sociais ter-se-ão tornado irregularidades. Novas normas e regras terão sido geradas durante tentativas de remediar o conflito; velhas regras terão caído em descrédito e sido abolidas. As bases de sustentação política terão sido alteradas. Alguns componentes do campo terão menos sustentação, outros mais, e outros terão ainda um novo apoio, enquanto alguns não terão, nenhum. A distribuição dos fatores de legitimidade terá mudado, assim como as técnicas utilizadas pelos líderes para conquistar anuência.
Estas mudanças podem ser observadas, averiguadas, registradas e, em alguns casos, seus indicadores podem até mesmo ser calculados e expressados em termos quantitativos. Ainda assim, no decorrer de todas essas mudanças, certas normas e relações cruciais — e outras aparentemente menos cruciais, até mesmo triviais e arbitrárias — persistirão.
As explicações tanto para a constância quanto para a mudança só podem ser encontradas pela análise sistemática das unidades processuais e estruturas temporais, pela observação das fases e dos sistemas atemporais. Pois cada fase possui suas propriedades específicas, e cada qual deixa sua marca especial nas metáforas e modelos nas cabeças das pessoas envolvidas umas com as outras no interminável fluxo da existência social.
TURNER, Victor [1974]. Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana. Niterói: Editora UFF, 2008.