Identidade
Distinguirei três concepções muito diferentes de identidade, a saber, as concepções de identidade do: sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno.
O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo "centro" consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo — contínuo ou "idêntico" a ele — ao longo da existência do indivíduo.
O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa. Pode-se ver que essa era uma concepção muito "individualista" do sujeito e de sua identidade, usualmente descrita como masculina.
A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação com "outras pessoas importantes para ele", que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos — a cultura — dos mundos que ele/ela habitava.
De acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na "interação" entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o "eu real", mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais "exteriores" e as identidades que esses mundos oferecem. A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o "interior" e o "exterior" — entre o mundo pessoal e o mundo público.
O fato de que projetamos a "nós próprios" nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os "parte de nós", contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis.
Argumenta-se, entretanto, que são exatamente essas coisas que agora estão "mudando". O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas.
Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais "lá fora" e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as "necessidades" objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma "celebração móvel": formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente.
O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.
Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu". A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.
Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente.
HALL. Stuart [1992]. A identidade cultural da pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2004.
Identidade Nacional
No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural. Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos que somos ingleses ou galeses ou indianos ou jamaicanos.
Obviamente, ao fazer isso estamos falando de forma metafórica. Essas identidades não estão literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós efetivamente pensamos nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial.
As identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação. Nós só sabemos o que significa ser inglês devido ao modo como a “inglesidade” veio a ser representada — como um conjunto de significados — pela cultura nacional inglesa.
Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política mas algo que produz sentidos — um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãs legais de uma nação; elas participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica e é isso que explica seu “poder para gerar um sentimento de identidade e lealdade”, como observa o historiador britânico Bill Schwarz.
As culturas nacionais são uma forma distintivamente moderna. A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo, à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas sociedades ocidentais, à cultura nacional.
As diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo colocadas, de forma subordinada, sob o domínio do estado-nação, que se tornou, assim, uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais modernas.
A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua vernacular como o meio dominante de comunicação em toda a nação, criou uma cultura homogênea e manteve instituições culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema educacional. Dessa e de outras formas, a cultura nacional se tornou uma característica-chave da industrialização e um dispositivo da modernidade.
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso — um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos.
As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens dela são construídas. A identidade nacional é uma “comunidade imaginada”, como argumentou o cientista político Benedict Anderson, ao considerar que as diferenças entre as nações residem nas formas diferentes pelas quais elas são imaginadas.
Mas como é imaginada a nação moderna? Que estratégias representacionais são acionadas para construir nosso senso comum sobre o pertencimento ou sobre a identidade nacional? Quais são as representações, digamos, de “Inglaterra”, que dominam as identificações e definem as identidades do povo “inglês”?
Em primeiro lugar, há a narrativa da nação, tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia, na escola e na cultura popular. Essas fornecem uma série de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação.
Como membros de tal “comunidade imaginada”, nos vemos, no olho de nossa mente, como compartilhando dessa narrativa. Ela dá significado e importância à nossa monótona existência, conectando nossas vidas cotidianas com um destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após nossa morte.
Desde a imagem de uma verde e agradável terra inglesa, com seu doce e tranquilo interior, com seus chalés de treliças e jardins campestres — “a ilha coroada” de Shakespeare — até às cerimônias públicas, o discurso da “inglesidade” representa o que “a Inglaterra” é, dá sentido à identidade de “ser inglês” e fixa a “Inglaterra” como um foco de identificação nos corações ingleses.
Em segundo lugar, há a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade. A identidade nacional é representada como primordial — “está lá, na verdadeira natureza das coisas”, algumas vezes adormecida, mas sempre pronta para ser “acordada” de sua “longa, persistente e misteriosa sonolência", para reassumir sua inquebrantável existência.
Os elementos essenciais do caráter nacional permanecem imutáveis, apesar de todas as vicissitudes da história. Está lá desde o nascimento, unificado e contínuo, “imutável” ao longo de todas as mudanças, eterno.
Uma terceira estratégia discursiva é constituída por aquilo que os historiadores Eric Hobsbawm e Terence Ranger chamam de “invenção da tradição”. Tradição inventada significa “um conjunto de práticas, de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado”.
“Tradições que parecem ou alegam ser antigas são muitas vezes de origem bastante recente e algumas vezes inventadas”. Por exemplo, “nada parece ser mais antigo e vinculado ao passado imemorial do que a pompa que rodeia a monarquia britânica e suas manifestações cerimoniais públicas. No entanto, na sua forma moderna, ela é produto do final do século XIX e XX”.
Um quarto exemplo de narrativa da cultura nacional é a do mito fundacional: uma estória que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo; não do tempo “real”, mas de um tempo “mítico”. Tradições inventadas tornam as confusões e os desastres da história inteligíveis, transformando a desordem em “comunidade” e desastres em triunfos.
Segundo Eric Hobsbawm e Terence Ranger, mitos de origem também ajudam povos desprivilegiados a “conceberem e expressarem seu ressentimento e sua satisfação em termos inteligíveis". Eles fornecem uma narrativa através da qual uma história alternativa ou uma contranarrativa, que precede às rupturas da colonização, pode ser construída. Novas nações são, então, fundadas sobre esses mitos.
A identidade nacional é também muitas vezes simbolicamente baseada na ideia de um povo puro, original. Mas, nas realidades do desenvolvimento nacional, é raramente esse povo primordial que persiste ou exercita o poder.
O discurso da cultura nacional não é, assim, tão moderno como aparenta ser. Ele constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade.
As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele “tempo perdido”, quando a nação era “grande"; são tentadas a restaurar as identidades passadas. Este constitui o elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura nacional. Mas frequentemente esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para mobilizar as “pessoas“ para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem os “outros" que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma nova marcha para a frente.
HALL. Stuart [1992]. A identidade cultural da pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2004.
Poder e Cultura Nacional
Devemos ter em mente esses três conceitos, ressonantes daquilo que constitui uma cultura nacional como uma “comunidade imaginada": as memórias do passado, o desejo por viver em conjunto e a perpetuação da herança.
As identidades nacionais representam precisamente o resultado da reunião de duas metades da equação nacional: tanto a condição de membro do estado-nação político quanto uma identificação com a cultura nacional.
Não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional. Mas seria a identidade nacional uma identidade unificadora desse tipo, uma identidade que anula e subordina a diferença cultural?
Uma cultura nacional nunca foi um simples ponto de lealdade, união e identificação simbólica. Ela é também uma estrutura de poder cultural. A maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta — isto é, pela supressão forçada da diferença cultural.
“O povo britânico” é constituído por uma série desse tipo de conquistas — céltica, romana, saxônica, viking e normanda. Ao longo de toda a Europa, essa história se repete. Cada conquista subjugou povos conquistados e suas culturas, costumes, línguas e tradições, e tentou impor uma hegemonia cultural mais unificada.
Como observou o historiador francês Ernest Renan, esses começos violentos que se colocam nas origens das nações modernas têm, primeiro, que ser “esquecidos", antes que se comece a forjar a lealdade com uma identidade nacional mais unificada, mais homogênea.
Assim, a cultura “britânica" não consiste de uma parceria igual entre as culturas componentes do Reino Unido, mas da hegemonia efetiva da cultura “inglesa", localizada no sul, que se representa a si própria como a cultura britânica essencial, por cima das culturas escocesas, galesas e irlandesas e, na verdade, por cima de outras culturas regionais.
Em segundo lugar, as nações são sempre compostas de diferentes grupos étnicos e de gênero. O nacionalismo britânico moderno foi o produto de um esforço muito coordenado, no alto período imperial e no período vitoriano tardio, para unificar as classes ao longo de divisões sociais, ao provê-las com um ponto alternativo de identificação — pertencimento comum à “família da nação“.
Pode-se desenvolver o mesmo argumento a respeito do gênero. As identidades nacionais são fortemente generificadas. Os significados e os valores da “inglesidade” têm fortes associações masculinas. As mulheres exercem um papel secundário como guardiãs do lar e do clã, e como “mães" dos "filhos" — homens — da nação.
Em terceiro lugar, as nações ocidentais modernas foram também os centros de impérios ou de esferas neoimperiais de influência, exercendo uma hegemonia cultural sobre as culturas dos colonizados. Alguns historiadores argumentam, atualmente, que foi nesse processo de comparação entre as “virtudes" da “inglesidade” e os traços negativos de outras culturas que muitas das características distintivas das identidades inglesas foram primeiro definidas.
Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo “unificadas" apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural.
Uma forma de unificá-las tem sido a de representá-las como a expressão da cultura subjacente de “um único povo”. A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais — língua, religião, costume, tradições, sentimento de “lugar” — que são partilhadas por um povo.
É tentador, portanto, tentar usar a etnia dessa forma “fundacional”. Mas essa crença acaba, no mundo moderno, por ser um mito. A Europa Ocidental, por exemplo, não tem qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas, híbridos culturais.
É ainda mais difícil unificar a identidade nacional em torno da raça. Em primeiro lugar, porque — contrariamente à crença generalizada — a raça não é uma categoria biológica ou genética que tenha qualquer validade científica. Há diferentes tipos e variedades, mas eles estão tão largamente dispersos no interior do que chamamos de “raças" quanto entre uma raça e outra. A diferença genética — o último refúgio das ideologias racistas — não pode ser usada para distinguir um povo do outro.
A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. lsto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais — discursos — que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas — cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. — como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro.
Naturalmente o caráter não científico do termo “raça" não afeta o modo como a lógica racial e os quadros de referência raciais são articulados e acionados, assim como não anula suas consequências.
Nos últimos anos, as noções biológicas sobre raça, entendida como constituída de espécies distintas — noções que subjaziam a formas extremas da ideologia e do discurso nacionalista em períodos anteriores: o eugenismo vitoriano, as teorias europeias sobre raça, o fascismo — têm sido substituídas por definições culturais, as quais possibilitam que a raça desempenhe um papel importante nos discursos sobre nação e identidade nacional.
Mas mesmo quando o conceito de “raça" é usado dessa forma discursiva mais ampla, as nações modernas teimosamente se recusam a ser determinadas por ela. Como observou Ernest Renan, “as nações líderes da Europa são nações de sangue essencialmente misto: a França é, ao mesmo tempo, céltica, ibérica e germânica. A Alemanha é germânica, céltica e eslava. A Itália é o país onde gauleses, etruscos, pelagianos e gregos, para não mencionar outros, se intersectam numa mistura indecifrável. As ilhas britânicas, consideradas como um todo, apresentam uma mistura de sangue celta e germânico, cujas proporções são particularmente difíceis de definir". E essas são misturas relativamente simples se comparadas com as encontradas na Europa Central e Oriental.
Este breve exame solapa a ideia da nação como uma identidade cultural unificada. As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de divisões e contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas.
Assim, quando vamos discutir se as identidades nacionais estão sendo deslocadas, devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais contribuem para “costurar“ as diferenças numa única identidade.
HALL. Stuart [1992]. A identidade cultural da pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2004.