Sociedade e Indivíduo
Não existe antagonismo propriamente dito entre o papel da sociedade e o do indivíduo. Um dos equívocos mais enganosos decorrentes deste dualismo do século XIX foi a ideia de que o que se subtraía da sociedade era acrescentado ao indivíduo e o que se subtraía do indivíduo era acrescentado à sociedade.
Filosofias de liberdade, doutrinas políticas de laissez-faire e revoluções que depuseram dinastias foram alicerçadas neste dualismo. A controvérsia existente na teoria antropológica entre a importância do padrão de cultura e a do indivíduo é apenas um pequeno estremecimento resultante dessa concepção da natureza da sociedade.
Na realidade, a sociedade e o indivíduo não são antagonistas. A cultura fornece a matéria-prima com a qual o indivíduo faz a sua vida. Se ela é escassa, o indivíduo fica em desvantagem; se ela é rica, o indivíduo tem a possibilidade de se mostrar à altura de sua oportunidade.
Todos os interesses particulares dos homens e das mulheres beneficiam-se do enriquecimento da bagagem tradicional da sua civilização.
A sensibilidade musical mais apurada só pode atuar dentro da bagagem intelectual e dos critérios da sua tradição. Ela contribuirá para essa tradição, talvez de forma significativa, mas se a sua realização corresponder aos instrumentos e à teoria musical que a cultura lhe forneceu.
Do mesmo modo, o talento para a observação se consome em alguma tribo melanésia nas fronteiras insignificantes do campo mágico-religioso. Para que suas potencialidades se realizem, ele depende do desenvolvimento de metodologia científica, e não haverá resultados se a cultura não tiver elaborado os conceitos e instrumentos necessários.
A pessoa comum ainda raciocina com base num necessário antagonismo entre sociedade e indivíduo. Em grande parte isto acontece porque em nossa civilização as atividades regulatórias da sociedade são selecionadas e nós tendemos a identificar a sociedade com as restrições que a lei nos impõe.
A lei estipula a quantos quilômetros por hora eu posso dirigir um carro. Se ela suprime esta restrição, eu fico muito mais livre. Esta base para um antagonismo básico entre sociedade e indivíduo é ingênua de fato quando passa a ser aplicada como noção filosófica e política fundamental. A sociedade só é regulatória eventualmente e em certas situações e a lei não é equivalente à ordem social.
Nas culturas homogêneas mais simples o hábito ou costume coletivo pode suplantar a necessidade de algum desenvolvimento de autoridade legal formal. Os indígenas norte-americanos dizem por vezes: “Nos tempos antigos não havia brigas por causa de áreas de caça ou territórios de pesca. Como não havia lei alguma, todo mundo fazia o que era certo”. Fica claro nestas palavras que na vida dos velhos tempos eles não se concebiam submetidos a um controle social imposto de fora.
Mesmo em nossa civilização a lei nunca é nada além de uma rústica ferramenta da sociedade, uma ferramenta cujo avanço presunçoso precisa ser refreado com muita frequência. Não deve ser jamais considerada o equivalente da ordem social.
A sociedade no sentido integral é uma entidade inseparável dos indivíduos que a compõem. Nenhum indivíduo pode chegar sequer ao limiar de suas potencialidades sem uma cultura da qual ele faça parte. Inversamente, em nenhuma civilização há elemento algum que em última análise não seja contribuição de um indivíduo. Qual poderia ser a origem de um traço cultural senão o comportamento de um homem, uma mulher ou uma criança?
A tradicional aceitação de um conflito entre sociedade e indivíduo tem sido em grande parte a razão de a ênfase no comportamento cultural ser interpretada com muita frequência como negação da autonomia do indivíduo.
Acredita-se com frequência que a antropologia é uma admissão de desesperança que torna insustentável uma ilusão humana benfazeja. Mas nenhum antropólogo com experiência em outras culturas acreditou jamais que os indivíduos fossem autômatos que cumprem mecanicamente os mandatos de sua civilização. Nenhuma cultura já observada conseguiu erradicar as diferenças de temperamento entre as pessoas que a compõem. Há sempre concessões mútuas.
Não se esclarece o problema do indivíduo ressaltando o antagonismo entre ele e a cultura, mas salientando seu reforço recíproco. Este relacionamento é tão estreito que não se pode analisar o padrão de cultura sem levar em consideração especificamente a sua relação com a psicologia individual.
Temos visto que toda sociedade escolhe algum segmento do arco de possíveis comportamentos humanos e que, na medida em que ela atinge a integração, suas instituições tendem a promover a expressão de seu segmento escolhido e inibir expressões opostas. Mas estas expressões opostas são as respostas próprias de certa parte daqueles que vivem nessa cultura.
Já examinamos as razões para acreditar que esta escolha é principalmente cultural e não biológica. Não podemos, portanto, mesmo que teoricamente imaginar que todas as respostas próprias de todo o seu povo serão igualmente atendidas pelas instituições de qualquer cultura.
Para a compreensão do comportamento do indivíduo não basta relacionar a sua história de vida pessoal aos seus dons naturais e avaliar estes últimos conforme uma normalidade arbitrariamente escolhida. É preciso também relacionar suas respostas próprias com o comportamento que é selecionado nas instituições de sua cultura.
O pensamento social não tem tarefa mais importante no momento do que considerar adequadamente a relatividade cultural. As implicações são fundamentais tanto na sociologia como na psicologia e o pensamento moderno sobre os contatos entre povos e a constante mudança em nossos modelos tem grande necessidade de uma orientação científica equilibrada.
O reconhecimento da relatividade cultural traz consigo seus próprios valores, valores estes que não precisam ser os das filosofias absolutistas. Ele desafia as opiniões costumeiras e incomoda muito àqueles que nelas foram educados. Inspira pessimismo porque gera confusão quanto às antigas fórmulas, não porque contenha nada intrinsecamente difícil.
Assim que a nova opinião for adotada como crença habitual, ela será outro bastião fidedigno da boa vida. Alcançaremos então uma fé social mais realista, aceitando como motivos de esperança e bases para a tolerância os padrões de vida coexistentes e igualmente válidos que a humanidade criou para si com as matérias-primas da existência.
BENEDICT, Ruth [1934]. Padrões de cultura. Petrópolis: Editora Vozes, 2013.
Estudo Cultural
Os antropólogos tiveram de se acostumar com as diferenças máximas entre sua própria cultura e uma outra, e as suas técnicas precisaram ser aperfeiçoadas para enfrentar particularmente este problema.
Sabem por experiência própria que existem grandes diferenças nas situações que pessoas de diferentes culturas têm de enfrentar e na maneira pela qual diferentes tribos e nações definem os significados dessas situações.
Em alguma aldeia do Ártico ou em um deserto tropical depararam com disposições tribais de responsabilidade de parentesco ou permuta financeira que seriam incapazes de supor nos seus momentos de mais fértil imaginação.
Tiveram de investigar, não apenas os detalhes de parentesco ou permuta, mas também as consequências de tais disposições na conduta da tribo e de que modo cada geração foi condicionada, desde a infância, a conduzir-se como os seus ancestrais o haviam feito antes deles.
Esta preocupação profissional com diferenças, seu condicionamento e suas consequências, bem poderia ser empregada, por exemplo, no estudo do Japão. Ninguém desconhece as diferenças culturais profundamente enraizadas entre os Estados Unidos e o Japão.
Corre mesmo entre nós uma tradição popular afirmando que tudo o que fazemos, eles fazem o contrário. Tal convicção de diferença é perigosa apenas se um estudioso contentar-se em dizer simplesmente que essas diferenças são tão fantásticas a ponto de ser impossível compreender esse povo.
O antropólogo dispõe de boa prova em sua experiência de que até mesmo a conduta estranha não nos impede de compreendê-la. Mais do que qualquer outro cientista social, ele tem-se utilizado das diferenças mais como uma base do que como uma tendência.
Nada o levou a dirigir tanto a atenção para instituições e povos senão o fato de serem eles fenomenalmente estranhos. Nada havia que ele pudesse tomar como seguro no modo de vida de sua tribo, sendo levado a examinar tudo e não apenas alguns fatos selecionados.
No estudo de países ocidentais, o leigo em estudos de culturas comparadas deixa passar setores inteiros de conduta. Toma por garantido tanta coisa, que não chega a explorar a gama de hábitos triviais na vida diária, nem as consagradas opiniões sobre assuntos caseiros que, colocados no panorama nacional, têm mais a ver com o futuro do país do que os tratados assinados por diplomatas.
O antropólogo viu-se obrigado a aperfeiçoar técnicas para o estudo do lugar-comum, já que os lugares-comuns na tribo que estudava diferiam em muito das réplicas dos mesmos, existentes em sua pátria. Quando tentou compreender a malignidade de uma tribo ou a pusilanimidade de outra, quando tentou planejar a maneira como agiria e se sentiria numa determinada situação, verificou que teria de se valer abundantemente de observações e detalhes que não se revelam amiúde com relação a outros países. Tinha boas razões para acreditar que fossem essenciais e sabia do tipo de pesquisa que iria desencavá-los.
Como antropóloga cultural, parti igualmente da premissa de que os aspectos mais isolados de conduta têm entre si alguma relação sistemática. Estudei seriamente a maneira como centenas de pormenores inscrevem-se em padrões globais.
Uma sociedade humana precisa preparar para si mesma um projeto de vida, aprovando modos determinados de enfrentar situações, modos determinados de mensurá-las. Os componentes dessa sociedade consideram essas soluções como as bases do universo. Integram-nas, por maiores que sejam as dificuldades.
Aqueles que aceitaram um sistema de valores, através do qual vivem, não podem conservar por muito tempo um setor segregado de suas vidas, onde vivam e procedam de acordo com um conjunto contrário de valores, a menos que se exponham à ineficiência e ao caos.
Procuram instilar-se de maior conformismo. Investem-se de algumas motivações e de algum fundamento lógico que lhes sejam comuns. Alguma consistência é necessária, do contrário o empreendimento todo vai por água abaixo. Conduta econômica, disposições familiares, ritos religiosos e objetivos políticos engrenam-se, portanto, entre si.
Numa área podem ocorrer mudanças mais rapidamente do que em outras, submetendo estas outras áreas a uma grande tensão, que surge da própria necessidade de consistência. Os dogmas religiosos, as práticas econômicas e a política não se mantêm represados em pequenos reservatórios estanques, porém transbordam sobre suas supostas fronteiras, misturando inevitavelmente suas águas, umas com as outras.
Sendo isto sempre verdadeiro, quanto mais um estudioso estiver aparentemente dispersando sua investigação entre os fatos da economia, do sexo, da religião e do cuidado do bebê, tanto melhor poderá observar o que está acontecendo na sociedade que estuda.
Poderá formular suas hipóteses e obter seus dados em qualquer setor da vida com vantagem. Poderá aprender a divisar as exigências que qualquer nação fizer, quer sejam elaboradas em termos políticos, econômicos ou morais, como expressões de hábitos e maneiras de pensar aprendidas na sua experiência social.
BENEDICT, Ruth [1946]. O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.