Relatividade Cultural
A antropologia estuda o fenômeno humano — a mente do ser humano, seu corpo, sua evolução, origens, instrumentos, arte ou grupos, não simplesmente em si mesmos, mas como elementos ou aspectos de um padrão geral ou de um todo.
Para enfatizar esse fato e integrá-lo a seus esforços, os antropólogos tomaram uma palavra de uso corrente para nomear o fenômeno e difundiram seu uso. Essa palavra é cultura.
Quando eles falam como se houvesse apenas uma cultura, como em "cultura humana", isso se refere muito amplamente à humanidade; por outro lado, quando falam sobre "uma cultura" ou sobre "as culturas da África", a referência é a tradições geográficas e históricas específicas, casos especiais do fenômeno humano. Assim, a cultura se tornou uma maneira de falar sobre a humanidade e sobre casos particulares do ser humano, quando visto sob uma determinada perspectiva.
Em seu sentido mais amplo, o termo "cultura" também procura reduzir as ações e propósitos humanos ao nível de significância mais básico, a fim de examiná-los em termos universais para tentar compreendê-los. Quando falamos de pessoas que pertencem a diferentes culturas, estamos portanto nos referindo a um tipo de diferença muito básico entre elas, sugerindo que há variedades específicas do fenômeno humano.
O fato de que a antropologia opta por estudar o ser humano em termos que são ao mesmo tempo tão amplos e tão básicos, buscando entender por meio da noção de cultura tanto sua singularidade quanto sua diversidade, coloca uma questão peculiar para essa ciência. Assim como o epistemólogo, que considera o "significado do significado", ou como o psicólogo, que pensa sobre como as pessoas pensam, o antropólogo é obrigado a incluir a si mesmo e seu próprio modo de vida em seu objeto de estudo, e investigar a si mesmo.
Mais precisamente, já que falamos do total de capacidades de uma pessoa como ''cultura", o antropólogo usa sua própria cultura para estudar outras, e para estudar a cultura em geral. Desse modo, a consciência da cultura gera uma importante qualificação dos objetivos e do ponto de vista do antropólogo como cientista: ele precisa renunciar à clássica pretensão racionalista de objetividade absoluta em favor de uma objetividade relativa, baseada nas características de sua própria cultura.
É evidente que um pesquisador deve ser tão imparcial quanto possível, na medida em que esteja consciente de seus pressupostos; mas frequentemente assumimos os pressupostos mais básicos de nossa cultura como tão certos que nem nos apercebemos deles.
A objetividade relativa pode ser alcançada descobrindo quais são essas tendências, as maneiras pelas quais nossa cultura nos permite compreender uma outra e as limitações que isso impõe a tal compreensão.
A objetividade "absoluta" exigiria que o antropólogo não tivesse nenhum viés e portanto nenhuma cultura. Em outras palavras, a ideia de cultura coloca o pesquisador em pé de igualdade com seus objetos de estudo: cada qual "pertence a uma cultura".
Uma vez que toda cultura pode ser entendida como uma manifestação específica ou um caso do fenômeno humano, e uma vez que jamais se descobriu um método infalível para "classificar" culturas diferentes e ordená-las em seus tipos naturais, presumimos que cada cultura, como tal, é equivalente a qualquer outra. Essa pressuposição é denominada "relatividade cultural".
A combinação dessas duas implicações da ideia de cultura — o fato de que nós mesmos pertencemos a uma cultura, isto é, objetividade relativa, e o de que devemos supor que todas as culturas são equivalentes, isto é, relatividade cultural — leva a uma proposição geral concernente ao estudo da cultura.
Como sugere a repetição da raiz "relativo", a compreensão de uma outra cultura envolve a relação entre duas variedades do fenômeno humano; ela visa a criação de uma relação intelectual entre elas, uma compreensão que inclua ambas.
A ideia de "relação" é importante aqui, pois é mais apropriada à conciliação de duas entidades ou pontos de vista equivalentes do que noções como "análise" ou "exame", com suas pretensões de objetividade absoluta.
Um antropólogo experiencia, de um modo ou de outro, seu objeto de estudo; ele o faz através do universo de seus próprios significados, e então se vale dessa experiência carregada de significados para comunicar uma compreensão aos membros de sua própria cultura. Ele só consegue comunicar essa compreensão se o seu relato fizer sentido nos termos de sua cultura.
Mas aqui surge a questão de saber o quanto de experiência é necessário. É preciso que o antropólogo seja adotado por uma tribo, fique íntimo de chefes e reis ou se case no seio de uma família típica? Ou basta que ele veja slides, estude mapas e entreviste cativos?
Idealmente, é claro, o pesquisador gostaria de saber o máximo possível sobre seu objeto de estudo; na prática, porém, a resposta a essa questão depende do tempo e do dinheiro disponíveis e da abrangência e dos propósitos do empreendimento.
Para o pesquisador quantitativo, o arqueólogo que lida com indícios de uma cultura ou o sociólogo que mede seus resultados, o problema é obter uma amostra adequada, encontrar evidências suficientes para que suas estimativas não sejam muito desviadas. Mas o antropólogo cultural ou social, ainda que por vezes possa recorrer a amostragens, está comprometido com um tipo diferente de rigor, baseado na profundidade e abrangência de seu entendimento da cultura estudada.
Se isso a que os antropólogos chamam de "cultura" é tão englobante como vimos supondo, então essa obsessão por parte do pesquisador de campo não é despropositada, pois a cultura estudada constitui um universo de pensamento e ação tão singular quanto a sua própria cultura.
Para que o pesquisador possa enfrentar o trabalho de criar uma relação entre tais entidades, não há outra maneira senão conhecer ambas simultaneamente, apreender o caráter relativo de sua cultura mediante a formulação concreta de outra. Assim é que gradualmente, no curso do trabalho de campo, ele próprio se torna o elo entre culturas por força de sua vivência em ambas; e é esse "conhecimento" e essa competência que ele mobiliza ao descrever e explicar a cultura estudada.
"Cultura", nesse sentido, traça um sinal de igualdade invisível entre o conhecedor — que vem a conhecer a si próprio — e o conhecido — que constitui uma comunidade de conhecedores.
De fato, poderíamos dizer que um antropólogo "inventa" a cultura que ele acredita estar estudando, que a relação — por consistir em seus próprios atos e experiências — é mais "real" do que as coisas que ela "relaciona". No entanto, essa explicação somente se justifica se compreendemos a invenção como um processo que ocorre de forma objetiva, por meio de observação e aprendizado, e não como uma espécie de livre fantasia.
Ao experienciar uma nova cultura, o pesquisador identifica novas potencialidades e possibilidades de se viver a vida, e pode efetivamente passar ele próprio por uma mudança de personalidade. A cultura estudada se torna "visível" e subsequentemente "plausível" para ele; de início ele a apreende como uma entidade distinta, uma maneira de fazer as coisas, e depois como uma maneira segundo a qual ele poderia fazer as coisas.
Desse modo, ele pela primeira vez compreende, na intimidade de seus próprios erros e êxitos, o que os antropólogos querem dizer quando usam a palavra "cultura". Antes disso, poder-se-ia dizer, ele não tinha nenhuma cultura, já que a cultura em que crescemos nunca é realmente "visível" — é tomada como dada, de sorte que suas pressuposições são percebidas como autoevidentes.
É apenas mediante uma "invenção" dessa ordem que o sentido abstrato de cultura — e de muitos outros conceitos — pode ser apreendido, e é apenas por meio do contraste experienciado que sua própria cultura se torna "visível". No ato de inventar outra cultura, o antropólogo inventa a sua própria e acaba por reinventar a própria noção de cultura.
WAGNER, Roy [1975]. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
Invenção da Cultura
A antropologia é o estudo do ser humano "como se" houvesse cultura. Ela ganha vida por meio da invenção da cultura, tanto no sentido geral, como um conceito, quanto no sentido específico, mediante a invenção de culturas particulares.
Uma vez que a antropologia existe por meio da ideia de cultura, esta tornou-se seu idioma geral, uma maneira de falar sobre as coisas, compreendê-las e lidar com elas.
É incidental questionar se as culturas existem. Elas existem em razão do fato de terem sido inventadas e em razão da efetividade dessa invenção. Essa invenção não necessariamente se dá no curso do trabalho de campo; pode-se dizer que ela ocorre toda vez e onde quer que algum conjunto de convenções "alienígena" ou "estrangeiro" seja posto em relação com o do sujeito.
A invenção da cultura faz parte do fenômeno mais geral da criatividade humana — transforma a mera pressuposição da cultura numa arte criativa. O trabalho de campo é um exemplo particularmente instrutivo porque desenvolve tal relação a partir da situação de campo e dos problemas pessoais dela derivados.
Um antropólogo denomina a situação que ele está estudando como "cultura" antes de mais nada para poder compreendê-la em termos familiares, para saber como lidar com sua experiência e controlá-la. Mas também o faz para verificar em que isso afeta sua compreensão da cultura em geral.
Quer ele saiba ou não, quer tenha a intenção ou não, seu ato "seguro" de tornar o estranho familiar sempre torna o familiar um pouco estranho. E, quanto mais familiar se torna o estranho, ainda mais estranho parecerá o familiar.
É uma espécie de jogo, se quisermos — um jogo de fingir que as ideias e convenções de outros povos são as mesmas, num sentido mais ou menos geral, que as nossas para ver o que acontece quando "jogamos com" nossos próprios conceitos por intermédio das vidas e ações de outros.
À medida que o antropólogo usa a noção de cultura para controlar suas experiências em campo, essas experiências, por sua vez, passam a controlar sua noção de cultura. Ele inventa "uma cultura" para as pessoas, e elas inventam "a cultura" para ele.
Uma vez que a experiência do pesquisador de campo se organiza em torno da cultura e é controlada por ela, sua invenção irá conservar uma relação significativa com nosso próprio modo de vida e pensamento. Assim, ela passa a encarnar uma espécie de metamorfose, um esforço de mudança contínua e progressiva das nossas formas e possibilidades de cultura, suscitada pela preocupação em compreender outros povos.
Não podemos usar analogias para revelar as idiossincrasias de outros estilos de vida sem aplicar estes últimos como "controles" na rearticulação de nosso próprio estilo da vida.
O entendimento antropológico se torna um "investimento" de nossas ideias e de nosso modo de vida no sentido mais amplo possível, e os ganhos a serem obtidos têm, correspondentemente, implicações de longo alcance.
A "cultura" que vivenciamos é ameaçada, criticada, contraexemplificada pelas "culturas" que criamos, e vice-versa. O estudo ou representação de uma outra cultura não consiste numa mera "descrição" do objeto, do mesmo modo que uma pintura não meramente "descreve" aquilo que figura.
Em ambos os casos há uma simbolização que está conectada com a intenção inicial do antropólogo ou do artista de representar o seu objeto. Mas o criador não pode estar consciente dessa intenção simbólica ao perfazer os detalhes de sua invenção, pois isso anularia o efeito norteador de seu "controle" e tornaria sua invenção autoconsciente.
Um estudo antropológico ou uma obra de arte autoconsciente é aquele que é manipulado por seu autor até o ponto em que ele diz exatamente o que queria dizer, e exclui aquele tipo de extensão ou autotransformação que chamamos de "aprendizado" ou "expressão". Assim, nosso entendimento tem necessidade do que lhe é externo, objetivo, seja este a própria técnica, como na arte "não objetiva", ou objetos de pesquisa palpáveis.
Ao forçar a imaginação do cientista ou do artista a seguir por analogia as conformações detalhadas de um objeto externo e imprevisível, sua invenção adquire uma convicção que de outra forma não se imporia.
A invenção é "controlada" pela imagem da realidade e pela falta de consciência do criador sobre o fato de estar criando. Sua imaginação — e muitas vezes todo o seu autogerenciamento — é compelida a enfrentar uma nova situação; assim como no choque cultural, ela é frustrada em sua intenção inicial e levada a inventar uma solução.
O que o pesquisador de campo inventa, portanto, é seu próprio entendimento: as analogias que ele cria são extensões das suas próprias noções e daquelas de sua cultura, transformadas por suas experiências da situação de campo. Ele utiliza essas últimas como uma espécie de "alavanca", como faz o atleta no salto com vara, para catapultar sua compreensão para além dos limites impostos por pontos de vista prévios.
Se ele pretender que suas analogias não sejam de modo algum analogias, mas uma descrição objetiva da cultura, concentrará esforços para refiná-las de modo a aproximá-las cada vez mais de sua experiência. Quando encontra discrepâncias entre sua própria invenção e a "cultura" nativa tal como vem a conhecê-la, ele altera e retrabalha sua invenção até que suas analogias pareçam mais apropriadas ou "acuradas".
Se esse processo é prolongado, como é o caso no decurso do trabalho de campo, o uso da ideia de "cultura" pelo antropólogo acabará por adquirir uma forma articulada e sofisticada. Gradualmente, o objeto de estudo, o elemento objetificado que serve como "controle" para sua invenção, é inventado por meio de analogias que incorporam articulações cada vez mais abrangentes, de modo que um conjunto de impressões é recriado como um conjunto de significados.
O efeito dessa invenção é tão profundo quanto inconsciente; cria-se o objeto no ato de tentar representá-lo mais objetivamente e ao mesmo tempo se criam, por meio de extensão analógica, as ideias e formas por meio das quais ele é inventado.
O "controle", seja o modelo do artista ou a cultura estudada, força o representador a corresponder às impressões que tem sobre ele, e no entanto essas impressões se alteram à medida que ele se vê mais e mais absorto em sua tarefa.
Um bom artista ou cientista se torna uma parte separada de sua cultura, que se desenvolve de modos inusitados, levando adiante suas ideias mediante transformações que outros talvez jamais experimentem.
É por isso que os artistas podem ser chamados de "educadores": temos algo — um desenvolvimento de nossos pensamentos — a aprender com eles. E é por isso que vale a pena estudar outros povos, porque toda compreensão de uma outra cultura é um experimento com nossa própria cultura.
WAGNER, Roy [1975]. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.