Olhar Antropológico
Talvez a primeira experiência do pesquisador de campo — ou no campo — esteja na domesticação teórica de seu olhar. Isso porque, a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação empírica, o objeto, sobre o qual dirigimos o nosso olhar, já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo.
Seja qual for esse objeto, ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade. Esse esquema conceitual — disciplinadamente apreendido durante o nosso itinerário acadêmico, daí o termo disciplina para as matérias que estudamos —, funciona como uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração — se me é permitida a imagem.
É certo que isso não é exclusivo do olhar, uma vez que está presente em todo processo de conhecimento, envolvendo, portanto, todos os atos cognitivos em seu conjunto. Contudo, é certamente no olhar que essa refração pode ser melhor compreendida.
Imaginemos um antropólogo no início de uma pesquisa junto a um determinado grupo indígena e entrando em uma maloca, uma moradia de uma ou mais dezenas de indivíduos, sem ainda conhecer uma palavra do idioma nativo. Essa moradia de tão amplas proporções e de estilo tão peculiar, como, por exemplo, as tradicionais casas coletivas dos antigos Tükúna, do alto rio Solimões, no Amazonas, teriam o seu interior imediatamente vasculhado pelo "olhar etnográfico", por meio do qual toda a teoria que a disciplina dispõe relativamente às residências indígenas passaria a ser instrumentalizada pelo pesquisador, isto é, por ele referida.
Nesse sentido, o interior da maloca não seria visto com ingenuidade, como uma mera curiosidade diante do exótico, porém com um olhar devidamente sensibilizado pela teoria disponível.
Ao basear-se nessa teoria, o observador bem preparado, como etnólogo, iria olhá-la como objeto de investigação previamente construído por ele, pelo menos em uma primeira prefiguração: passará, então, a contar os fogos — pequenas cozinhas —, cujos resíduos de cinza e carvão irão indicar que, em torno de cada um, estiveram reunidos não apenas indivíduos, porém pessoas, portanto seres sociais, membros de um único "grupo doméstico".
O que lhe dará a informação subsidiária que pelo menos nessa maloca, de conformidade com o número de fogos, estaria abrigada uma certa porção de grupos domésticos, formados por uma ou mais famílias elementares e, eventualmente, de indivíduos "agregados" — originários de outro grupo tribal.
Conhecerá, igualmente, o número total de moradores — ou quase — contando as redes dependuradas nos mourões da maloca dos membros de cada grupo doméstico. Observará, também, as características arquitetônicas da maloca, classificando-a segundo uma tipologia de alcance planetário sobre estilos de residências, ensinada pela literatura etnológica existente.
Ao se tomar, ainda, os mesmos Tükúna, mas em sua feição moderna, o etnólogo que visitasse suas malocas observaria de pronto que elas diferenciavam-se radicalmente daquelas descritas por cronistas ou viajantes que, no passado, navegaram pelos igarapés por eles habitados.
Verificaria que as amplas malocas, então dotadas de uma cobertura em forma de semiarco descendo suas laterais até ao solo e fechando a casa a toda e qualquer entrada de ar — e do olhar externo —, salvo por portas removíveis, acham-se agora totalmente remodeladas.
A maloca já se apresenta amplamente aberta, constituída por uma cobertura de duas águas, sem paredes — ou com paredes precárias —, e, internamente, impondo-se ao olhar externo, veem-se redes penduradas nos mourões, com seus respectivos mosquiteiros — um elemento da cultura material indígena desconhecido antes do contato interétnico e desnecessário para as casas antigas, uma vez que seu fechamento impedia a entrada de qualquer tipo de inseto.
Nesse sentido, para esse etnólogo moderno, já tendo ao seu alcance uma documentação histórica, a primeira conclusão será sobre a existência de uma mudança cultural de tal monta que, se, de um lado, facilitou a construção das casas indígenas, uma vez que a antiga residência exigia um grande dispêndio de trabalho, dada sua complexidade arquitetônica, por outro, afetou as relações de trabalho, por não ser mais necessária a mobilização de todo o clã para a edificação da maloca, ao mesmo tempo em que tornava o grupo residencial mais vulnerável aos insetos, posto que os mosquiteiros somente poderiam ser úteis nas redes, ficando a família a mercê desses insetos durante todo o dia.
Observava-se, assim, literalmente, a que o saudoso etnólogo Herbert Baldus chamava de uma espécie de "natureza morta" da aculturação. Como torná-la viva, senão pela penetração na natureza das relações sociais?
Retomemos nosso exemplo para vermos que para dar-se conta da natureza das relações sociais mantidas entre as pessoas da unidade residencial — e delas entre si, em se tratando de uma pluralidade de malocas de uma mesma aldeia ou "grupo local" —, o olhar por si só não seria suficiente.
Como alcançar, apenas pelo olhar, o significado dessas relações sociais sem conhecermos a nomenclatura do parentesco, por meio da qual poderemos ter acesso a um dos sistemas simbólicos mais importantes das sociedades ágrafas e sem o qual não nos será possível prosseguir em nossa caminhada?
O domínio das teorias de parentesco pelo pesquisador torna-se, então, indispensável. Para se chegar, entretanto, à estrutura dessas relações sociais, o etnólogo deverá se valer, preliminarmente, de outro recurso de obtenção dos dados: ouvir.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de [1998]. O trabalho do antropólogo. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
Ouvir Antropológico
Se o olhar possui uma significação específica para um cientista social, o ouvir também goza dessa propriedade. Imaginemos uma entrevista por meio da qual o pesquisador pode obter informações não alcançáveis pela estrita observação.
Sabemos que autores, como o antropólogo britânico Radcliffe-Brown, sempre recomendaram a observação de rituais para estudarmos sistemas religiosos. Para ele, "no empenho de compreender uma religião, devemos primeiro concentrar atenção mais nos ritos que nas crenças".
O que significa dizer que a religião podia ser mais rigorosamente observável na conduta ritual por ser essa "o elemento mais estável e duradouro", se a compararmos com as crenças. Porém, isso não quer dizer que mesmo essa conduta, sem as ideias que a sustentam, jamais poderia ser inteiramente compreendida.
Descrito o ritual, por meio do olhar e do ouvir — suas músicas e seus cantos —, faltava-lhe a plena compreensão de seu sentido para o povo que o realizava e sua significação para o antropólogo que o observava em toda sua exterioridade. Por isso, a obtenção de explicações fornecidas pelos próprios membros da comunidade investigada permitiria obter aquilo que os antropólogos chamam de "modelo nativo", matéria-prima para o entendimento antropológico.
Tais explicações nativas só poderiam ser obtidas por meio da entrevista, portanto, de um ouvir todo especial. Contudo, para isso, há de se saber ouvir.
Se, aparentemente, a entrevista tende a ser encarada como algo sem maiores dificuldades, salvo, naturalmente, a limitação linguística — isto é, o fraco domínio do idioma nativo pelo etnólogo —, ela torna-se muito mais complexa quando consideramos que a maior dificuldade está na diferença entre "idiomas culturais", a saber, entre o mundo do pesquisador e o do nativo, esse mundo estranho no qual desejamos penetrar.
É o confronto entre esses dois mundos que constitui o contexto no qual ocorre a entrevista. É, portanto, em um contexto essencialmente problemático que tem lugar o nosso ouvir.
Como poderemos, então, questionar as possibilidades da entrevista nessas condições tão delicadas? Penso que esse questionamento começa com a pergunta sobre qual a natureza da relação entre entrevistador e entrevistado.
Sabemos que há uma longa e arraigada tradição, na literatura etnológica, sobre a relação "pesquisador/informante". No ato de ouvir o "informante", o etnólogo exerce um poder extraordinário sobre o mesmo, ainda que pretenda posicionar-se como observador o mais neutro possível.
Esse poder, subjacente às relações humanas, já na relação pesquisador/informante desempenhara uma função profundamente empobrecedora do ato cognitivo: as perguntas feitas em busca de respostas pontuais lado a lado da autoridade de quem as faz — com ou sem autoritarismo —, criam um campo ilusório de interação.
A rigor, não há verdadeira interação entre nativo e pesquisador, porquanto na utilização daquele como informante, o etnólogo não cria condições de efetivo diálogo. A relação não é dialógica. Ao passo que transformando esse informante em "interlocutor", uma nova modalidade de relacionamento pode — e deve — ter lugar. Faz com que os horizontes semânticos em confronto — o do pesquisador e o do nativo — abram-se um ao outro, de maneira a transformar um tal confronto em um verdadeiro "encontro etnográfico".
Cria um espaço semântico partilhado por ambos interlocutores, graças ao qual pode ocorrer uma "fusão de horizontes", desde que o pesquisador tenha a habilidade de ouvir o nativo e por ele ser igualmente ouvido, encetando formalmente um diálogo entre "iguais", sem receio de estar, assim, contaminando o discurso do nativo com elementos de seu próprio discurso.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de [1998]. O trabalho do antropólogo. São Paulo: Editora UNESP, 2000.