Teoria Sociológica de Médio Alcance
A teoria de médio alcance é usada principalmente em sociologia para servir de guia às pesquisas empíricas. Ocupa uma situação intermediária entre as teorias gerais de sistemas sociais, as quais estão muito afastadas das espécies particulares de comportamento, organização e mudança sociais, para explicar o que é observado, e as minuciosas ordenadas descrições de pormenores que não estão de modo algum generalizados.
É claro que a teoria de médio alcance também envolve abstrações, mas estas estão bastante próximas dos dados observados para serem incorporadas em conceitos que permitam os testes empíricos.
As teorias de médio alcance tratam de aspectos limitados dos fenômenos sociais, conforme o próprio nome indica. Por exemplo, a teoria de grupos de referência e de privação relativa tem como ponto de partida a simples ideia de que o indivíduo toma os padrões de outras pessoas significativas como base para uma autoavaliação.
Algumas das inferências que se podem tirar dessa ideia estão em conflito com as expectativas da opinião comum, baseadas sobre um conjunto não examinado de pressupostos "evidentes por si mesmos".
O senso comum, por exemplo, sugeriria que quanto maior a perda real sofrida por uma família num desastre de massas, mais intensamente se sentiria destituída. Essa crença baseia-se no pressuposto não testado de que a grandeza da perda objetiva está linearmente relacionada à avaliação subjetiva da perda e que esta avaliação confina-se dentro da experiência pessoal de cada um.
Mas a teoria da privação relativa conduz a uma hipótese assaz diferente — ou seja, que as autoavaliações dependem das comparações que os indivíduos fazem de sua própria situação com a de outras pessoas com as quais percebem ser comparáveis no momento.
Essa teoria então sugere que, sob determinadas circunstâncias, famílias que sofreram sérias perdas se sentirão menos destituídas que as que suportaram menores perdas, se tiverem oportunidade de comparar-se com pessoas que sofreram perdas bem mais graves.
Esse padrão é reforçado pela tendência dos meios de comunicação públicos em focalizar “as pessoas que mais sofreram”, o que contribui para fixá-las como grupo de referência, com a qual outras vítimas podem comparar-se com “vantagem”. À medida que prossegue a investigação, descobre-se que esses padrões de autoavaliação afetam por sua vez o moral da comunidade de sobreviventes e as suas motivações para ajudar os outros.
Portanto, dentro de uma classe especial de comportamento, a teoria da privação relativa conduz-nos a um conjunto de hipóteses que podem ser testadas empiricamente. A conclusão confirmada pode então ser enunciada de modo bastante simples: quando poucos são atingidos na mesma extensão, o sofrimento e a perda de cada um parecem grandes; quando muitos são feridos em graus muito diferentes, até mesmo prejuízos grandes parecem pequenos quando comparados com outros muito maiores.
A probabilidade de se fazerem comparações depende muito dos diferentes graus de visibilidade das perdas de grande ou pequena proporção. É óbvio que o comportamento das pessoas confrontadas com um grave desastre é apenas um exemplo dentro de um número indefinidamente grande de situações particulares, às quais a teoria dos grupos de referência pode ser instrutivamente aplicada, da mesma forma que a teoria de mudança na estratificação social, a teoria da autoridade, a teoria da interdependência institucional, ou a teoria da anomia.
Mas é igualmente claro que essas teorias de médio alcance não foram logicamente derivadas de uma única teoria que abrange todos os sistemas sociais, embora, uma vez desenvolvidas, elas possam manter consistência com uma só.
Além disso, cada teoria é mais do que uma simples generalização empírica — um conceito isolado resumindo uniformidades de relações observadas entre duas ou mais variáveis. Uma teoria compreende um conjunto de suposições, das quais foram derivadas as próprias generalizações empíricas.
MERTON, Robert [1968]. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970.
Sistemas Totais de Teoria Sociológica
A procura de um sistema global de teoria sociológica, no qual as observações sobre todos os aspectos do comportamento, da organização e da mudança sociais, encontrariam prontamente seu lugar preordenado, tem o mesmo desafio estimulante e as mesmas promessas insignificantes daqueles sistemas filosóficos que procuravam tudo abarcar e que caíram num merecido esquecimento.
A convicção, entre alguns sociólogos, de que devemos, desde logo, estabelecer um grande sistema teórico, não resulta somente de uma comparação errônea com as ciências físicas, como também provém da posição ambígua da sociologia na sociedade contemporânea.
A dúvida em saber se o conhecimento acumulado da sociologia é adequado para satisfazer as exigências que lhe estão sendo feitas em escala crescente — pelos planejadores da política, pelos reformadores e reacionários, pelos homens de negócios e altos funcionários governamentais, pelos reitores e estudantes das universidades — provoca uma convicção demasiado zelosa e defensiva por parte de alguns sociólogos, de que necessitam, de qualquer maneira, estar à altura dessas exigências por mais prematuras e extravagantes que sejam.
Essa convicção pressupõe, erradamente, que uma ciência deve estar em condições de responder a todas as perguntas, inteligentes ou estúpidas que lhe são feitas. É uma convicção que implicitamente se baseia na suposição sacrílega e masoquista de que o cientista deva ser onisciente e onicompetente — e que admitir que não se possui conhecimento equivale a admitir total ignorância.
Como os sociólogos que, inadvertidamente se comparam aos cientistas físicos contemporâneos, por estarem ambos vivendo o mesmo momento histórico, o público em geral e os líderes que o orientam, muitas vezes se enganam ao fazer uma apreciação definitiva da ciência social baseada na sua capacidade em resolver os problemas urgentes da sociedade hodierna.
O errado masoquismo do cientista social e o inconsciente sadismo do público provêm da incapacidade de lembrar-se de que a ciência social, como todas as ciências, está em constante desenvolvimento e que não existe qualquer dispositivo providencial capaz de adequá-la, a qualquer momento, à solução da extensa série de problemas que a humanidade enfrenta.
Se insisto em apontar o hiato existente entre os problemas práticos prescritos pelo sociólogo e o estado dos seus conhecimentos e habilidades acumuladas, isto não significa evidentemente, que o sociólogo deva deixar de desenvolver cada vez mais uma teoria "compreensiva" — que abrange todos os caracteres compreendidos numa ideia geral — ou não deva empenhar-se em pesquisas diretamente ligadas aos problemas práticos mais urgentes. Acima de tudo, não significa que os sociólogos devam deliberadamente procurar os problemas pragmaticamente triviais.
Diferentes setores do espectro da pesquisa e da teoria básicas possuem diferentes probabilidades de ser apropriados a problemas práticos particulares; têm potenciais diversos de relevância. É importante, porém, restabelecer um senso histórico de proporção.
A urgência ou a imensidade de um problema social prático não é suficiente para assegurar sua imediata solução. Em qualquer momento determinado, os cientistas estão próximos da solução de alguns problemas e afastados de outros.
Considerando-se tudo isso, parece razoável supor que a sociologia progredirá na medida em que sua maior — mas não exclusiva — preocupação for a de desenvolver teorias de médio alcance, e que ficará atrasada se a sua atenção primordial se concentrar no desenvolvimento de sistemas sociológicos totais.
A teoria sociológica, se pretende progredir de modo significativo, deve prosseguir nestes planos interconexos: desenvolvendo teorias especiais das quais se possam derivar hipóteses que permitam ser investigadas empiricamente e desenvolvendo — e não revelando repentinamente — um esquema conceitual progressivamente mais geral, adequado a consolidar grupos de teorias especiais.
Concentrar-se exclusivamente em teorias especiais traz-nos o risco de ficarmos envolvidos em hipóteses específicas que explicam aspectos limitados do comportamento, organizações e mudanças sociais, mas que permanecem mutuamente inconsistentes.
Concentrar-se inteiramente num grande esquema conceitual importante para fazer derivar dele todas as teorias subsidiárias, corresponde a correr o risco de produzir equivalentes sociológicos modernos — do século XX — dos amplos sistemas filosóficos do passado, com todas as suas variadas sugestões, seu esplendor arquitetônico e sua esterilidade científica.
Grande parte do que hoje é descrito como teoria sociológica consiste de orientações gerais para conseguir dados, sugerindo tipos de variáveis que as teorias devem de qualquer maneira levar em conta, mais do que exposições claramente formuladas e verificáveis de relações entre variáveis específicas. Temos muitos conceitos, mas poucas teorias confirmadas; muitos pontos de vista, mas poucos teoremas; muitas "abordagens", mas poucas chegadas.
Creio — e as crenças são, sabidamente sujeitas a erro — que as teorias de médio alcance ainda encerram a maior promessa, contanto que a sua procura esteja associada à preocupação generalizada de consolidar as teorias especiais num conjunto mais geral de conceitos e de proposições mutuamente consistentes.
MERTON, Robert [1968]. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970.
Funções Manifestas e Latentes
A distinção entre funções manifestas e latentes foi imaginada para evitar a confusão inadvertida, frequentemente encontrada na literatura sociológica, entre motivações conscientes do comportamento social e suas consequências objetivas. A distinção esclarece a análise de padrões sociais aparentemente irracionais.
Em primeiro lugar, a distinção ajuda a interpretação sociológica de muitas práticas sociais que persistem mesmo quando seu propósito manifesto não esteja claramente alcançado. O processo consagrado pelo tempo nestes casos tem sido a de que diversos observadores, especialmente os leigos, se referem a tais práticas como "superstições", "irracionalidades", "simples inércia da tradição" etc.
Em outras palavras, quando o comportamento do grupo não atinge suas finalidades ostensivas — e na verdade, frequentemente não pode fazê-lo — há uma inclinação para atribuir sua ocorrência à falta de inteligência, à crua ignorância, às sobrevivências ou à chamada inércia. Assim, por exemplo, as cerimônias dos Hopi, destinadas a produzir abundante chuva, podem ser rotuladas como uma prática supersticiosa de "gente primitiva" e isto permite encerrar o assunto.
Dado o conceito de função latente contudo lembramo-nos de que este comportamento talvez possa realizar uma função para o grupo, embora esta função possa ser muito afastada da finalidade declarada da conduta.
O conceito de função latente amplia a atenção do observador para mais além da questão de se saber se a conduta consegue ou não a sua finalidade confessada. Ignorando temporariamente esses propósitos explícitos, dirige a atenção para outro campo de consequências: as que se relacionam, por exemplo, com as personalidades individuais dos Hopi que concorrem na cerimônia e com a persistência e continuidade do grupo maior.
Se alguém se limitasse ao problema de saber se existe uma função manifesta — deliberada —, isto se converteria num problema não para o sociólogo, mas para o meteorologista. E é certo que os nossos meteorologistas estão de acordo em que a cerimônia da chuva não produz chuva; mas isto nada tem a ver com a assunto. Significa, simplesmente, que a cerimônia não tem este uso técnico, que esta finalidade da cerimônia e suas consequências reais não coincidem.
Mas com a conceito de função latente, continuamos nossa investigação e examinamos as consequências da cerimônia, não para os deuses da chuva ou para os fenômenos meteorológicos, mas para o grupo que realiza a cerimônia. E então se pode verificar, como muitos observadores já a indicaram, que o cerimonial tem realmente funções, mas funções latentes ou não deliberadas.
As cerimônias podem desempenhar, por exemplo, a função latente de reforçar a identidade do grupo, proporcionando uma ocasião periódica em que os indivíduos disseminados de um grupo se reúnem para entregar-se a uma atividade comum. Como o sociólogo francês Émile Durkheim, entre outros, indicou faz muito tempo, tais cerimônias constituem um meio de se expressarem coletivamente sentimentos que, numa análise ulterior, resultam ser uma fonte fundamental de unidade do grupo.
Armado com o conceito de função latente o sociólogo estende sua investigação às direções mais promissoras para o desenvolvimento teórico da matéria. Examina a prática social familiar — ou planejada — para descobrir as funções latentes e, por isso mesmo, geralmente não reconhecidas — examina também, é claro, as funções manifestas.
Examina, por exemplo, as consequências do novo plano de salários, a pedido, suponhamos, do sindicato em que estão organizados os trabalhadores; ou as consequências de um programa de propaganda, não somente para aumentar seu propósito confessado de despertar entusiasmo patriótico, mas também para que um grande número de pessoas deixe de manifestar sua oposição quando diverge da política oficial etc.
Em resumo, supõe-se que as contribuições intelectuais distintivas do sociólogo se dirigem primordialmente ao estudo das consequências implícitas ou inesperadas — entre as quais figuram as funções latentes — de práticas sociais, assim como ao estudo das consequências explícitas ou previstas — entre as quais se contam as funções manifestas.
MERTON, Robert [1968]. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970.