Etnocentrismo
"As sociedades indígenas são sociedades sem Estado."
Esse julgamento de fato, em si mesmo correto, na verdade dissimula uma opinião, um juízo de valor, que prejudica então a possibilidade de constituir uma antropologia política como ciência rigorosa.
O fato que se enuncia é que "as sociedades indígenas estão privadas de alguma coisa — o Estado — que lhes é, tal como a qualquer outra sociedade — a nossa, por exemplo — necessária".
Essas sociedades são, portanto, "incompletas". Não são exatamente "verdadeiras sociedades" — não são policiadas —, e "subsistem na experiência talvez dolorosa de uma falta" — falta do Estado — que elas tentariam, sempre em vão, suprir.
De um modo mais ou menos confuso, é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os trabalhos dos pesquisadores: "não se pode imaginar a sociedade sem o Estado", "o Estado é o destino de toda sociedade".
Descobre-se nessa abordagem uma fixação etnocentrista tanto mais sólida quanto é ela, o mais das vezes, inconsciente. A referência imediata, espontânea, é, se não aquilo que melhor se conhece, pelo menos o mais familiar. Cada um de nós traz efetivamente em si, interiorizada como a fé do crente, essa certeza de que a sociedade existe para o Estado.
Como conceber então a própria existência das sociedades indígenas, a não ser como espécies à margem da história universal, sobrevivências anacrônicas de uma fase distante e, em todos os lugares há muito ultrapassada?
Reconhece-se aqui a outra face do etnocentrismo, a convicção complementar de que a história teria um sentido único, de que toda sociedade estaria condenada a inscrever-se nessa história e a percorrer as suas etapas que, a partir da selvageria, conduziriam à civilização. “Todos os povos policiados foram selvagens”, escreve Raynal, religioso e filósofo francês do século XVIII.
Por trás das formulações modernas, o velho evolucionismo permanece, na verdade, intacto. Mais delicado para se dissimular na linguagem da antropologia, e não mais na da filosofia, ele aflora contudo ao nível das categorias que pretendem ser científicas.
CLASTRES, Pierre [1974]. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
Relativismo Cultural e Tecnologia
Já se percebeu que, quase sempre, as sociedades indígenas são determinadas de maneira negativa, sob o critério da falta: "sociedades sem Estado", "sociedades sem escrita", "sociedades sem história".
Mostra-se como sendo da mesma ordem a determinação dessas sociedades no plano econômico: "sociedades de economia de subsistência".
Se, com isso, quisermos significar que "as sociedades indígenas desconhecem a economia de mercado onde são escoados os excedentes da produção", nada afirmamos de modo estrito, e contentamo-nos em destacar mais uma falta, sempre com referência ao nosso próprio mundo: "essas sociedades que não possuem Estado, escrita, história, também não dispõem de mercado".
Todavia, pode objetar o bom senso, para que serve um mercado, se não há excedentes? Ora a ideia de economia de subsistência contém em si mesma a afirmação de que: "se as sociedades indígenas não produzem excedentes, é porque são incapazes de fazê-lo, inteiramente ocupadas que estariam em produzir o mínimo necessário à sobrevivência, à subsistência".
Imagem antiga, sempre eficaz, da "miséria dos selvagens". E, a fim de explicar essa suposta incapacidade das sociedades indígenas de "sair da estagnação de viver o dia a dia, dessa alienação permanente na busca de alimentos", invocam-se o subequipamento técnico, a inferioridade tecnológica.
O que ocorre na realidade? Se entendermos por técnica o conjunto dos processos de que se munem as pessoas, não para assegurarem o domínio absoluto da natureza, mas para garantir um domínio do meio natural adaptado e relativo às suas necessidades, então não mais podemos falar em inferioridade técnica das sociedades indígenas: elas demonstram uma capacidade de satisfazer suas necessidades pelo menos igual àquela de que se orgulha a sociedade industrial.
O que surpreende nos esquimós e nos australianos é justamente a riqueza, a imaginação e o refinamento da atividade técnica, o poder de invenção e de eficácia demonstrada pelas ferramentas utilizadas por esses povos.
Basta fazer uma visita aos museus etnográficos: o rigor de fabricação dos instrumentos da vida cotidiana faz praticamente de cada modesto utensílio uma obra de arte.
Não existe portanto hierarquia no campo da técnica, nem tecnologia superior ou inferior; só se pode medir um equipamento tecnológico pela sua capacidade de satisfazer, num determinado meio, as necessidades da sociedade.
E, sob esse ponto de vista, não parece de forma alguma que as sociedades indígenas se mostraram incapazes de se proporcionar os meios de realizar esse fim.
CLASTRES, Pierre [1974]. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
Sociedade Contra o Estado
A sociedade indígena não possui um rei, mas um chefe que não é chefe de Estado. O que significa isso? Simplesmente que o chefe não dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar uma ordem.
O chefe não é um comandante, as pessoas da comunidade não têm nenhum dever de obediência. O espaço da chefia não é o lugar do poder, e a figura — mal denominada — do "chefe" indígena não prefigura em nada aquela de um futuro déspota.
Em que o chefe da comunidade não prefigura o chefe de Estado? Em que uma tal antecipação do Estado é impossível na sociedade indígena? Essa descontinuidade radical — que torna impensável uma passagem progressiva da chefia indígena à máquina estatal — se funda naturalmente nessa relação de exclusão que coloca o poder político no exterior da chefia.
O que se deve imaginar é um chefe sem poder, uma instituição, a chefia, estranha à sua essência, a autoridade. Essencialmente encarregado de eliminar conflitos que podem surgir entre indivíduos, famílias e linhagens etc., o chefe só dispõe, para restabelecer a ordem e a concórdia, do prestígio que lhe reconhece à sociedade.
Mas evidentemente prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa de pacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra: não para arbitrar entre as partes opostas, pois o chefe não é um juiz e não pode se permitir tomar partido por um ou por outro, mas para, armado apenas de sua eloquência, tentar persuadir as pessoas da necessidade de se apaziguar, de renunciar às injúrias, de imitar os ancestrais que sempre viveram no bom entendimento.
Empreendimento cuja vitória nunca é certa, aposta sempre incerta, pois a palavra do chefe não tem força de lei. Se o esforço de persuasão fracassa, então o conflito corre o risco de se resolver pela violência e o prestígio do chefe pode muito bem não sobreviver a isso, uma vez que ele deu provas de sua impotência em realizar o que se espera dele.
Em função de que a comunidade estima que tal pessoa é digna de ser um chefe? No fim das contas, somente em função de sua competência "técnica": dons oratórios, habilidade como caçador, capacidade de coordenar as atividades guerreiras, ofensivas ou defensivas. E, de forma alguma a sociedade deixa o chefe ir além desse limite técnico, ela jamais deixa uma superioridade técnica se transformar em autoridade política.
O chefe está a serviço da sociedade, é a sociedade em si mesma — verdadeiro lugar do poder — que exerce como tal sua autoridade sobre o chefe. É por isso que é impossível para o chefe alterar essa relação em seu proveito, colocar a sociedade a seu próprio serviço, exercer sobre a comunidade o que denominamos poder: a sociedade nunca tolerará que seu chefe se transforme em déspota.
Existem entretanto exceções quase sempre ligadas à guerra. Sabemos com efeito que a preparação e a condução de uma expedição militar são as únicas circunstâncias em que o chefe pode exercer um mínimo de autoridade, fundada somente, repitamo-lo, em sua competência técnica de guerrear.
Uma vez as coisas terminadas, e qualquer que seja o resultado do combate, o chefe guerreiro volta a ser um chefe sem poder, e em nenhuma hipótese o prestígio decorrente da vitória se transforma em autoridade. Tudo se passa precisamente sobre essa separação mantida pela sociedade entre poder e prestígio, entre a glória de um guerreiro vencedor e o comando que lhe é proibido exercer.
A propriedade essencial — quer dizer, que toca a essência — da sociedade indígena é exercer um poder absoluto e completo sobre tudo que a compõe, é interditar a autonomia de qualquer um dos subconjuntos que a constituem, é manter todos os movimentos internos, conscientes e inconscientes, que alimentam a vida social nos limites e na direção desejados pela sociedade.
A comunidade manifesta, entre outras — e pela violência se for necessário —, sua vontade de preservar a ordem social vigente, interditando a emergência de um poder político individual, central e separado.
CLASTRES, Pierre [1974]. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2012.