Sociologia
A tarefa primeira da sociologia é, talvez, a de reconstituir a totalidade a partir da qual se pode descobrir a unidade entre a consciência subjetiva que o indivíduo tem do sistema social e a estrutura objetiva desse sistema.
O sociólogo se esforça, de um lado, para recobrar e compreender a consciência espontânea do fato social, consciência que, por essência, não reflete sobre si; e, de outro lado, ele se esforça para apreender o fato em sua própria natureza, graças ao privilégio que lhe confere sua situação de observador que abdica de "agir sobre o social" para pensá-lo.
A partir daí, ele se obriga a reconciliar a verdade do dado objetivo, que sua análise lhe permite descobrir, e a certeza subjetiva daqueles que vivem esse dado.
Quando o sociólogo descreve, por exemplo, as contradições internas do sistema de trocas matrimoniais, mesmo quando essas contradições não afloram, como tais, à consciência daqueles que são vítimas delas, ele nada mais faz que tematizar a experiência vivida dessas pessoas que concretamente experimentam essas contradições.
Se o sociólogo se proíbe de concordar com a consciência que os sujeitos constroem sobre suas situações e de tomar ao pé da letra a explicação que eles dão a elas, ele considera essa consciência com muita seriedade para tentar descobrir seu fundamento real, só se dando por satisfeito quando consegue abarcar na unidade de uma compreensão a verdade imediatamente dada à consciência vivida e a verdade laboriosamente adquirida pela reflexão científica.
A sociologia talvez não merecesse uma hora de esforço se tivesse por finalidade apenas descobrir os cordões que movem os indivíduos que ela observa, se esquecesse que lida com seres humanos, mesmo quando estes, à maneira das marionetes, jogam um jogo cujas regras ignoram, em suma, se ela não se desse à tarefa de restituir a essas pessoas o sentido de suas ações.
BOURDIEU, Pierre [1962]. O camponês e seu corpo. Curitiba: Revista de Sociologia e Política, 2006.
Habitus
As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio, as condições materiais de existência características de uma condição de classe, que podem ser apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus: um sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem, implícita ou explícita, que funciona como um sistema de esquemas geradores; é gerador de estratégias que podem ser objetivamente afins dos interesses objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para este fim.
Habitus são sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente "reguladas" e "regulares" sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente.
No mesmo momento em que elas aparecem como determinadas pelo futuro, isto é, pelos fins explícitos e explicitamente colocados de um projeto ou plano, as práticas que o habitus produz — enquanto princípio gerador de estratégias que permitem fazer face a situações imprevisíveis e sem cessar renovadas — são determinadas pela antecipação implícita de suas consequências, isto é, pelas condições passadas da produção de seu princípio de produção de modo que elas tendem a reproduzir as estruturas objetivas das quais elas são, em última análise, o produto.
A prática é, ao mesmo tempo, necessária e relativamente autônoma em relação à situação considerada em sua imediatidade pontual, porque ela é o produto da relação dialética entre uma situação e um habitus — entendido como um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações — e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, que permitem resolver os problemas da mesma forma, e às correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidas por esses resultados.
Princípio gerador duravelmente armado de improvisações regradas, o habitus produz práticas que, na medida em que elas tendem a reproduzir as regularidades imanentes às condições objetivas da produção de seu princípio gerador, mas, ajustando-se às exigências inscritas a título de potencialidades objetivas na situação diretamente afrontada, não se deixam deduzir diretamente nem das condições objetivas, pontualmente definidas como soma de estímulos que podem aparecer como tendo-as desencadeado diretamente, nem das condições que produziram o princípio durável de sua produção.
Só podemos, portanto, explicar essas práticas se colocarmos em relação a estrutura objetiva que define as condições sociais de produção do habitus — que engendrou essas práticas — com as condições do exercício desse habitus, isto é, com a conjuntura que, salvo transformação radical, representa um estado particular dessa estrutura.
Se o habitus pode funcionar enquanto operador que efetua praticamente a ação de colocar em relação esses dois sistemas de relação na e pela produção da prática, é porque ele é história feita natureza, isto é, negada enquanto tal porque realizada numa segunda natureza.
Com efeito, o "inconsciente" não é mais que o esquecimento da história que a própria história produz ao incorporar as estruturas objetivas que ela produz nessas quase naturezas que são os habitus.
Pelo fato de que a identidade das condições de existência tende a produzir sistemas de disposições semelhantes — pelo menos parcialmente —, a homogeneidade relativa dos habitus que delas resulta está no princípio de uma harmonização objetiva das práticas e das obras, harmonização esta própria a lhes conferir a regularidade e a objetividade que definem sua "racionalidade" específica e que as fazem ser vividas como evidentes ou necessárias, isto é, como imediatamente inteligíveis e previsíveis, por todos os agentes dotados do domínio prático do sistema de esquemas de ação e de interpretação objetivamente implicados na sua efetivação e por esses somente — quer dizer, por todos os membros do mesmo grupo ou da mesma classe, produtos de condições objetivas idênticas que estão destinadas a exercer simultaneamente um efeito de universalização e de particularização, na medida em que elas só homogeneízam os membros de um grupo distinguindo-os de todos os outros.
Enquanto ignorarmos o verdadeiro princípio dessa orquestração sem maestro que confere regularidade, unidade e sistematicidade às práticas de um grupo ou de uma classe, e isto na ausência de qualquer organização espontânea ou imposta dos projetos individuais, nos condenamos ao artificialismo ingênuo que não reconhece outro princípio unificador da ação ordinária ou extraordinária de um grupo ou de uma classe a não ser o da concertação consciente e meditada do complô.
A harmonização objetiva dos habitus de grupo ou de classe é o que faz com que as práticas possam ser objetivamente afinadas na ausência de qualquer interação direta e, a fortiori, de qualquer concertação explícita.
BOURDIEU, Pierre [1972]. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
Capital Cultural
A noção de capital cultural impôs-se, primeiramente, como uma hipótese indispensável para dar conta da desigualdade de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais, relacionando o “sucesso escolar”, ou seja, os benefícios específicos que as crianças das diferentes classes e frações de classe podem obter no mercado escolar, à distribuição do capital cultural entre as classes e frações de classe. Este ponto de partida implica em uma ruptura com os pressupostos inerentes à visão comum que considera o sucesso ou fracasso escolar como efeito das “aptidões” naturais.
O capital cultural pode existir sob três formas: no estado incorporado, ou seja, sob a forma de disposições duráveis do organismo; no estado objetivado, sob a forma de bens culturais, quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas, que constituem indícios ou a realização de teorias ou de críticas dessas teorias, de problemáticas, etc.; e, enfim, no estado institucionalizado, forma de objetivação que é preciso colocar à parte porque, como se observa em relação ao certificado escolar, ela confere ao capital cultural — de que é, supostamente, a garantia — propriedades inteiramente originais.
A maior parte das propriedades do capital cultural pode inferir-se do fato de que, em seu estado fundamental, está ligado ao corpo e pressupõe sua incorporação. A acumulação de capital cultural exige uma incorporação que, enquanto pressupõe um trabalho de inculcação e de assimilação, custa tempo que deve ser investido pessoalmente pelo investidor.
Sendo pessoal, o trabalho de aquisição é um trabalho do "sujeito" sobre si mesmo. Fala-se em "cultivar-se". O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da "pessoa", um habitus, isto é, um sistema de esquemas de percepção e apreciação, estruturas cognitivas e avaliatórias adquiridas através da experiência durável de uma posição do mundo social.
Pelo fato de estar ligado, de múltiplas formas, à pessoa em sua singularidade biológica e ser objeto de uma transmissão socialmente hereditária que é sempre altamente dissimulada, e até mesmo invisível, ele constitui um desafio para todos aqueles que lhe aplicam a velha e inextirpável distinção entre as propriedades herdadas e as propriedades adquiridas, isto é, acrescentadas pelo próprio indivíduo ao seu patrimônio hereditário; de forma que consegue acumular os prestígios da propriedade inata e os méritos da aquisição.
É, sem dúvida, na própria lógica da transmissão do capital cultural que reside o princípio mais poderoso da eficácia ideológica dessa espécie de capital. Sabe-se que a apropriação do capital cultural objetivado — portanto, o tempo necessário para realizá-Ia — depende, principalmente, do capital cultural incorporado pelo conjunto da família.
Com efeito, as diferenças no capital cultural possuído pela família implicam em diferenças: primeiramente, na precocidade do início do empreendimento de transmissão e de acumulação, tendo por limite a plena utilização da totalidade do tempo biologicamente disponível, ficando o tempo livre máximo a serviço do capital cultural máximo; e depois na capacidade assim definida para satisfazer às exigências propriamente culturais de um empreendimento de aquisição prolongado.
Além disso, e correlativamente, o tempo durante o qual determinado indivíduo pode prolongar seu empreendimento de aquisição depende do tempo livre que sua família pode lhe assegurar, ou seja, do tempo liberado da necessidade econômica que é a condição da acumulação inicial — tempo que pode ser avaliado como tempo em que se deixa de ganhar.
O capital cultural no estado objetivado detém um certo número de propriedades que se definem apenas em sua relação com o capital cultural em sua forma incorporada. Os bens culturais, tais como escritos, pinturas, monumentos etc., transmissíveis em sua materialidade, podem ser objeto de uma apropriação material, que pressupõe o capital econômico, e de uma apropriação simbólica, que pressupõe o capital cultural.
Por consequência, o proprietário dos instrumentos de produção deve encontrar meios para se apropriar ou do capital incorporado que é a condição da apropriação específica, ou dos serviços dos detentores desse capital. Por exemplo, para possuir máquinas, basta ter capital econômico; para se apropriar delas e utilizá-Ias de acordo com sua destinação específica — definida pelo capital científico e tecnológico que se encontra incorporado nelas —, é preciso dispor, pessoalmente ou por procuração, de capital incorporado.
O capital cultural objetivado só existe e subsiste como capital ativo e atuante, de forma material e simbólica, na condição de ser apropriado pelos agentes e utilizado como arma e objeto das lutas que se travam nos campos da produção cultural — campo artístico, científico, etc. — e, para além desses, no campo das classes sociais, onde os agentes obtêm benefícios proporcionais ao domínio que possuem desse capital objetivado, portanto, na medida de seu capital incorporado.
Com o diploma, essa certidão de competência cultural que confere ao seu portador um valor convencional, constante e juridicamente garantido no que diz respeito à cultura, a alquimia social produz uma forma de capital cultural que tem uma autonomia relativa em relação ao seu portador e, até mesmo em relação ao capital cultural que ele possui, efetivamente, em um dado momento histórico.
Basta pensar no concurso que, a partir do continuum das diferenças infinitesimais entre as performances, produz descontinuidades duráveis e brutais, do tudo ao nada, como aquela que separa o último aprovado do primeiro reprovado, e institui uma diferença de essência entre a competência estatutariamente reconhecida e garantida e o simples capital cultural, constantemente intimado a demonstrar seu valor.
Vê-se claramente, nesse caso, a magia performática do poder de instituir, poder de fazer ver e de fazer crer, ou, numa só palavra, de fazer reconhecer. Não existe fronteira que não seja mágica, isto é, imposta e mantida — às vezes, com risco de vida — pela crença coletiva.
Ao conferir ao capital cultural possuído por determinado agente um reconhecimento institucional, o certificado escolar permite, além disso, a comparação entre os diplomados e, até mesmo, sua "permuta", substituindo-os uns pelos outros na sucessão; permite também estabelecer taxas de convertibilidade entre o capital cultural e o capital econômico, garantindo o valor em dinheiro de determinado capital escolar.
Produto da conversão de capital econômico em capital cultural, ele estabelece o valor, no plano do capital cultural, do detentor de determinado diploma em relação aos outros detentores de diplomas e, inseparavelmente, o valor em dinheiro pelo qual pode ser trocado no mercado de trabalho — o investimento escolar só tem sentido se um mínimo de reversibilidade da conversão que ele implica for objetivamente garantido.
Pelo fato de que os benefícios materiais e simbólicos que o certificado escolar garante, dependem também de sua raridade, pode ocorrer que os investimentos — em tempo e esforços — sejam menos rentáveis do que se previa no momento em que eles foram realizados — com a modificação, de fato, da taxa de convertibilidade entre capital escolar e capital econômico.
As estratégias de reconversão do capital econômico em capital cultural, que estão entre os fatores conjunturais da explosão escolar e da inflação de diplomas, são comandadas pelas transformações da estrutura das oportunidades de lucro asseguradas pelas diferentes espécies de capital.
BOURDIEU, Pierre [1979]. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (org.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 2001.
Reprodução Escolar
A sociologia da educação configura seu objeto particular quando se constitui como ciência das relações entre a reprodução cultural e a reprodução social, ou seja, no momento em que se esforça por estabelecer a contribuição que o sistema de ensino oferece com vistas à reprodução da estrutura das relações de força e das relações simbólicas entre as classes, contribuindo assim para a reprodução da estrutura da distribuição do capital cultural entre as classes.
A definição tradicional do "sistema de educação" como o conjunto dos mecanismos institucionais ou habituais pelos quais se encontra assegurada, segundo a expressão do sociólogo francês Émile Durkheim, "a conservação de uma cultura herdada do passado", ou seja, a transmissão entre gerações da informação acumulada, permite às teorias clássicas dissociar a função de reprodução cultural que cabe a qualquer sistema de ensino, de sua função de reprodução da estrutura social.
Tais teorias baseiam-se no postulado tácito de que as diferentes ações pedagógicas que operam em uma formação social, vale dizer, tanto aquelas que as famílias das diferentes classes sociais exercem como a que a escola exerce, colaboram harmoniosamente na transmissão de um patrimônio cultural concebido como uma propriedade indivisa do conjunto da "sociedade".
No entanto, as frações mais ricas em capital cultural são propensas a investir mais na educação de seus filhos e, ao mesmo tempo, em práticas culturais propícias a manter e aumentar sua raridade específica.
De fato, a estatística de frequência ao teatro, ao concerto e sobretudo ao museu — uma vez que neste último caso, talvez seja quase nulo o efeito de obstáculos econômicos — basta para lembrar que o legado de bens culturais acumulados e transmitidos pelas gerações anteriores, pertence realmente — embora seja formalmente oferecido a todos — aos que detêm os meios para dele se apropriarem.
Quer dizer, que os bens culturais enquanto bens simbólicos só podem ser apreendidos e possuídos como tais — ao lado das satisfações simbólicas que acompanham tal posse — por aqueles que detêm o código que permite decifrá-los. Em outros termos, a apropriação destes bens supõe a posse prévia dos instrumentos de apropriação.
O livre jogo das leis da transmissão cultural faz com que o capital cultural retome às mãos do capital cultural e, com isso, encontra-se reproduzida a estrutura de distribuição do capital cultural entre as classes sociais, isto é, a estrutura de distribuição dos instrumentos de apropriação dos bens simbólicos que uma formação social seleciona como dignos de serem desejados e possuídos.
Ao apresentar as hierarquias sociais e a reprodução destas hierarquias como se estivessem baseadas na hierarquia de "dons", méritos ou competências que suas sanções estabelecem e consagram, ou melhor, ao converter hierarquias sociais em hierarquias escolares, o sistema escolar cumpre uma função de legitimação cada vez mais necessária à perpetuação da "ordem social" uma vez que a evolução das relações de força entre as classes tende a excluir de modo mais completo a imposição de uma hierarquia fundada na afirmação bruta e brutal das relações de força.
A segregação efetiva que se estabelece desde o ingresso no ensino secundário entre os alunos dos diferentes colégios e das diferentes seções tende a se reforçar à medida que avança o curso, em virtude do reforço contínuo das diferenças resultantes da orientação dos mais favorecidos culturalmente em direção às instituições capazes de intensificar sua vantagem.
Também as instituições de ensino superior que asseguram ou legitimam o acesso às classes dirigentes e, sobretudo as grandes escolas, são quase totalmente monopolizadas pelas classes dominantes.
Os mecanismos objetivos que permitem às classes dominantes conservar o monopólio das instituições escolares de maior prestígio — ainda que aparentemente tal monopólio seja colocado em jogo em cada geração —, se escondem sob a roupagem de procedimentos de seleção inteiramente democráticos cujos critérios únicos seriam o mérito e o talento, e capazes de converter aos ideais do sistema os membros eliminados e os membros eleitos das classes dominadas, estes últimos os "milagrosos" levados a viver como "milagroso" um destino de exceção que constitui a melhor garantia da democracia escolar.
O êxito escolar é função do capital cultural e da propensão a investir no mercado escolar e, em consequência, as frações mais ricas em capital cultural e mais dispostas a investir em trabalho e aplicação escolar são aquelas que recebem a consagração e o reconhecimento da escola.
BOURDIEU, Pierre [1970]. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.