Socialização e Primeira Infância
O processo por meio do qual o indivíduo aprende a ser um membro da sociedade é designado pelo nome de socialização. A socialização é a imposição de padrões sociais à conduta individual. Esses padrões chegam mesmo a interferir nos processos fisiológicos do organismo.
Na biografia do indivíduo, a socialização, especialmente em sua fase inicial, constitui um fato que se reveste dum tremendo poder de constrição e duma importância extraordinária.
Sob o ponto de vista do observador estranho, os padrões impostos durante o processo de socialização são altamente relativos. Dependem não apenas das características individuais dos adultos que cuidam da criança, mas também dos vários grupamentos a que pertencem esses adultos.
Assim, por exemplo, a natureza dos padrões de conduta aplicados a uma criança depende não somente do fato de ser a mesma um brasileiro ou um estadunidense, mas também da circunstância de pertencer à classe média ou à classe operária dos Estados Unidos.
Mas, sob o ponto de vista da criança, estes mesmos padrões são sentidos de forma bastante absoluta. Temos razões para supor que, se não fosse assim, a criança seria perturbada e o processo de socialização não poderia ser levado avante.
O caráter absoluto com que os padrões sociais atingem a criança resulta de dois fatos bastante simples: o grande poder que os adultos exercem numa situação como aquela em que se encontra a criança e a ignorância desta sobre a existência de padrões alternativos.
Os psicólogos divergem sobre se a criança tem a impressão de que nessa fase da vida exerce um controle bastante pronunciado sobre os adultos, uma vez que os mesmos são sensíveis às suas necessidades, ou se vê neles um ameaça contínua, porque depende deles tão fortemente.
De qualquer maneira, não pode haver a menor dúvida de que, em termos objetivos, os adultos exercem um poder avassalador sobre a criança. E claro que esta pode resistir à pressão exercida por eles, mas o resultado provável de qualquer conflito só poderá ser a vitória dos adultos. São eles que trazem a maior parte das recompensas pelas quais anseia a criança e dos castigos que teme.
Além disso é evidente que a criança ignora qualquer alternativa aos padrões de conduta que lhe são impostos. Os adultos apresentam-lhe certo mundo — e para a criança, este mundo é o mundo. Só posteriormente a mesma descobre que existem alternativas fora desse mundo, que o mundo de seus pais é relativo no tempo e no espaço e que padrões diferentes podem ser adotados. Só então o indivíduo toma conhecimento da relatividade dos padrões e dos mundos sociais.
O veículo primordial da socialização é a linguagem. Ao assenhorear-se da linguagem, a criança aprende a transmitir e reter certos significados socialmente reconhecidos. Adquire a capacidade de pensar abstratamente, isto é, consegue ir além da situação imediata com que se defronta. E é também por meio do aprendizado da linguagem que a criança adquire a capacidade de refletir.
As reflexões incidem sobre a experiência passada, que se integra numa versão coerente e cada vez mais ampla da realidade. A experiência presente é continuamente interpretada em conformidade com essa visão e a experiência futura não pode ser apenas imaginada, mas também planejada. E através dessa reflexão cada vez mais intensa que a criança toma consciência de si mesma como uma individualidade, no sentido literal de "re-flexão", isto é, do fenômeno através do qual a atenção da criança retorna do mundo exterior para incidir sobre ela própria.
É muito fácil dizer, e até certo ponto não deixa de ser correto, que a socialização é um processo de configuração ou moldagem. A criança é configurada pela sociedade, é por ela moldada de forma a fazer dela um membro reconhecido e participante. Mas é importante que não se veja nisso um processo unilateral.
Mesmo no início da vida, a criança não é uma vítima passiva da socialização. Resiste à mesma, dela participa e nela colabora de forma variada. A socialização é um processo recíproco, visto que afeta não apenas o indivíduo socializado, mas também os socializantes.
Não é difícil observar esse fato na vida quotidiana. Geralmente os pais alcançaram um êxito maior ou menor em moldar a criança de acordo com os padrões gerais criados pela sociedade e desejados por eles. Mas a experiência também produz modificações nos pais.
A reciprocidade da criança, isto é, sua capacidade de exercer uma ação individual e independente sobre o mundo e as pessoas que o habitam, cresce na razão direta da capacidade de usar a linguagem. No sentido literal da palavra, a criança nessa fase começa a responder aos adultos.
BERGER, Peter; BERGER, Brigitte [1975]. Socialização: como ser um membro da sociedade. In: FORACCI, Marialice; MARTINS, José (org.). Sociologia e sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1977.
Socialização Primária e Secundária
A socialização não chega ao fim no momento em que a criança se torna um participante integral da sociedade. Na verdade, poderíamos dizer que a socialização nunca chega ao fim. O que acontece numa biografia normal é apenas que a intensidade e o alcance da socialização diminuem depois da primeira fase da infância.
Os sociólogos estabelecem distinção entre a socialização primária e a socialização secundária. A socialização primária é o processo por meio do qual a criança se transforma num membro participante da sociedade. A socialização secundária compreende todos os processos posteriores, por meio dos quais o indivíduo é introduzido num mundo social específico.
Qualquer treinamento profissional, por exemplo, constitui um processo de socialização secundária. Em certos casos esses processos são relativamente superficiais. Assim, por exemplo, nenhuma modificação profunda na identidade do indivíduo se torna necessária para habilitá-lo a exercer a profissão de contador.
No entanto, isso não ocorre se o indivíduo for treinado para tornar-se um sacerdote ou um revolucionário profissional. Existem exemplos de socialização desse tipo que se parecem com a socialização realizada na primeira infância.
A socialização secundária também se acha presente em experiências das mais variadas, como a de melhorar a posição social, mudar de residência, adaptar-se a uma doença crônica ou ser aceito num novo círculo de amigos.
Todos os processos de socialização se realizam numa interação face a face com outras pessoas. Em outras palavras, a socialização sempre envolve modificações no microcosmo do indivíduo. Ao mesmo tempo, a maior parte dos processos de socialização, tanto primária como secundária, liga o indivíduo às estruturas complexas do macrocosmo.
As atitudes que o indivíduo aprende através da socialização geralmente se relacionam com sistemas amplos de significados e valores que se estendem muito além de sua situação imediata. Os hábitos de ordem e limpeza, por exemplo, não são apenas ideias excêntricas de determinado par de pais, mas constituem valores muito importantes num amplo mundo da classe média.
Da mesma forma, os papéis aprendidos no curso da socialização relacionam-se com vastas instituições, que talvez não sejam imediatamente visíveis no microcosmo do indivíduo. A aprendizagem do papel de menino corajoso não só acarreta a aprovação dos pais e companheiros de folguedo, mas assume certa importância para o indivíduo enquanto este abre caminho num mundo bem mais amplo de instituições, que inclui desde o campo de futebol do colégio até as organizações militares.
A socialização liga o microcosmo ao macrocosmo. De início, habilita o indivíduo a ligar-se a determinados outros indivíduos; após isso, torna-o capaz de estabelecer contato com um universo social inteiro. Para o bem ou para o mal, a própria condição humana traz consigo esse tipo de relacionamento numa base vitalícia.
BERGER, Peter; BERGER, Brigitte [1975]. Socialização: como ser um membro da sociedade. In: FORACCI, Marialice; MARTINS, José (org.). Sociologia e sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1977.
Socialização e Identidade
A parte socializada da individualidade costuma ser designada como a identidade. Qualquer sociedade pode ser vista como um repertório de identidades: a do menino, da menina, do pai, da mãe, do policial, do professor, do ladrão, do arcebispo, do general, etc. Através duma espécie de loteria essas identidades são atribuídas aos diversos indivíduos.
Algumas delas já são atribuídas com o nascimento, como a de menino ou menina. Outras vezes a identidade é atribuída ao indivíduo numa fase posterior da vida, como a de menino esperto ou menina bonita ou, ao contrário, de menino estúpido ou menina feia.
Outras identidades são guardadas como que para aquisição, a fim de que os indivíduos possam obtê-las através dum esforço espontâneo como, por exemplo, a de policial ou arcebispo. Mas, quer a identidade seja atribuída ao indivíduo, quer seja adquirida por ele, ela sempre é assimilada através dum processo de interação com outros.
São outros que o identificam de certa maneira. Só depois que uma identidade é confirmada pelos outros, é que pode tornar-se real para o indivíduo ao qual pertence. Em outras palavras, a identidade resulta do intercurso da identificação com a autoidentificação. Isto aplica-se até mesmo às identidades deliberadamente constituídas pelo próprio indivíduo.
Por exemplo, em nossa sociedade existem indivíduos identificados como homens que se sentem como mulheres. Podem fazer várias coisas, que vão até a cirurgia destinada a reconstituí-los de acordo com a nova identidade. O objetivo principal a ser atingido, porém, consiste em fazer com que ao menos alguns outros aceitem a nova identidade, ou seja, que os identifiquem nesses termos.
É impossível ao indivíduo ser alguém ou alguma coisa por muito tempo, exclusivamente por sua conta. Outros têm de nos dizer quem somos, outros têm de confirmar nossa identidade.
Uma vez examinadas as relações entre a socialização e a identidade, logo perceberemos porque grupos ou sociedades inteiras podem ser caracterizados de acordo com identidades específicas. Os americanos, por exemplo, podem ser reconhecidos não apenas por determinados padrões de conduta, mas também com base em certas características que muitos deles têm em comum, — ou seja, segundo uma identidade especificamente americana.
BERGER, Peter; BERGER, Brigitte [1975]. Socialização: como ser um membro da sociedade. In: FORACCI, Marialice; MARTINS, José (org.). Sociologia e sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1977.