Sociedade e Indivíduo
A sociologia trata dos problemas da sociedade e a sociedade é formada por nós e pelos outros. Aquele que estuda e pensa a sociedade é ele próprio um dos seus membros.
Ao pensarmo-nos na sociedade contemporânea, é difícil fugir ao sentimento de estarmos a encarar seres humanos como se fossem meros objetos, separados de nós por um fosso intransponível. Este sentido de separação é expresso, reproduzido e reforçado por conceitos e idiomas correntes que fazem com que este atual tipo de experiência surja como evidente e incontestável.
Falamos do indivíduo e do seu meio, da criança e da família, do indivíduo e da sociedade ou do sujeito e do objeto, sem termos claramente presente que o indivíduo faz parte do seu ambiente, da sua família, da sua sociedade.
Olhando mais de perto o chamado “meio ambiente” da criança, vemos que ele consiste primariamente noutros seres humanos, pai, mãe, irmãos e irmãs. Aquilo que conceitualizamos como sendo a “família”, não seria de todo uma família se não houvesse filhos.
A sociedade, que é muitas vezes colocada em oposição ao indivíduo, é inteiramente formada por indivíduos, sendo nós próprios um ser entre os outros. No entanto, os instrumentos convencionais com que pensamos e falamos são geralmente construídos como se tudo aquilo que experienciássemos como externo ao indivíduo fosse uma coisa, um “objeto”, pior ainda, um objeto estático.
Conceitos como “família” ou “escola” referem-se essencialmente a grupos de seres humanos interdependentes, a configurações específicas que as pessoas formam umas com as outras. Mas a nossa maneira tradicional de formar esses conceitos faz com que esses grupos formados por seres humanos interdependentes apareçam como bocados de matéria-objetos, tais como as rochas, árvores ou casas.
É usual dizermos que a sociedade é a “coisa” que os sociólogos estudam. Mas este modo reificante de nos exprimirmos levanta grandes dificuldades, chegando por vezes a impedir a compreensão da natureza dos problemas sociológicos.
A reificação de conceitos obscurece e distorce a compreensão da nossa própria vida em sociedade. Tal reificação é um encorajamento constante à ideia de que a sociedade é constituída por estruturas que nos são exteriores e que os indivíduos são simultaneamente rodeados pela sociedade e separados dela por uma barreira invisível.
Referimo-nos habitualmente a essas estruturas como se elas existissem não só acima e para além de nós mesmos, mas também acima e para além de qualquer pessoa. Neste tipo de pensamento, parece evidente que o “eu” ou “os indivíduos particulares” estão de um lado, havendo do outro lado a estrutura social, o “meio ambiente” que me rodeia, a mim e aos outros “eus”.
Estas concepções tradicionais devem ser substituídas por uma visão mais realista das pessoas que, através das suas disposições e inclinações básicas, são orientadas umas para as outras e unidas umas às outras das mais diversas maneiras.
Estas pessoas constituem teias de interdependência ou configurações de muitos tipos, tais como famílias, escolas, cidades, estratos sociais ou estados. Cada uma dessas pessoas constitui um ego ou uma pessoa. Entre essas pessoas colocamo-nos nós próprios.
O constrangimento característico que as estruturas sociais exercem sobre aqueles que as formam é particularmente significativo. Procuramos dar uma explicação satisfatória a esta imposição, atribuindo uma existência a essas estruturas — uma realidade objetiva, que se coloca acima dos indivíduos que as constituem e para além desses próprios indivíduos.
A maneira corrente de formarmos as palavras e os conceitos reforça a tendência do nosso pensamento para reificar e desumanizar as estruturas sociais. Porém, não é difícil compreender que o que pretendemos conceitualizar como forças sociais são de fato forças exercidas pelas pessoas, sobre outras pessoas e sobre elas próprias.
ELIAS, Norbert [1970]. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 2008.
Objetos e Normas Sociais
A faca, pela própria natureza de seu uso social, reflete mudanças na personalidade humana, com suas mutáveis compulsões e desejos. Ela é materialização de situações históricas e de fidelidades estruturais da sociedade.
Uma coisa acima de todas é característica de seu uso como utensílio da mesa em nossa atual sociedade ocidental: as inumeráveis proibições e tabus que a cercam. A faca é com certeza um instrumento perigoso já no que poderíamos chamar de sentido racional. É uma arma de ataque. Provoca ferimentos e descarna animais que foram abatidos.
Mas esse aspecto obviamente perigoso está inçado de emoções. A faca torna-se símbolo dos sentimentos os mais diversos, ligados à sua função e forma, mas não deduzidos “logicamente” de sua finalidade. O medo que desperta ultrapassa o racional e é maior do que o perigo “calculável”, provável. E o mesmo vale quanto ao prazer que seu uso e aparência despertam, mesmo que este aspecto seja hoje menos evidente.
De acordo com a estrutura de nossa sociedade, o ritual diário de seu uso é hoje determinado mais pelo desagrado e medo do que pelo prazer que a cerca. Por isso, seu uso mesmo à refeição é restringido por grande número de proibições. Estas estendem-se muito além do “puramente funcional”.
Mas para todas elas nos ocorre facilmente uma explicação racional, em geral vaga e nem sempre fácil de se provar. Só quando esse tabus são examinados em conjunto surge a suposição de que a atitude social em relação à faca e às regras que lhe pautam o uso à mesa — e acima de tudo os tabus que a cercam — são primariamente de natureza emocional.
Medo, repugnância, culpa, associações e emoções dos tipos os mais díspares lhe exageram o perigo real. E é exatamente isto o que ancora tão firme e profundamente essas proibições na personalidade e lhes dá o caráter de tabus.
Na Idade Média, com sua classe dominante de guerreiros e a constante disposição para a luta, e em conformidade com o estágio de controle de emoções e face aos regulamentos relativamente tolerantes impostos às compulsões, são muito poucas as proibições relativas às facas.
“Não limpe os dentes com a faca” é uma exigência constante, mas é a principal proibição e não aponta para futuras restrições ao utensílio. Além do mais, a faca é, de longe, o utensílio mais importante à mesa. Que seja levada à boca é algo que se aceita como natural.
Mas há indicações em fins da Idade Média, mais diretas ainda que em qualquer período posterior, de que a cautela necessária no uso da faca tem origem não só na consideração racional de que o indivíduo pode cortar-se, ou machucar-se de alguma maneira, mas, acima de tudo, na emoção provocada pela vista ou ideia de uma faca apontada para o próprio rosto.
“Não voltes tua faca para o rosto, pois há nisso perigo e grande risco” é lido no “Book of Curtesye” do escritor inglês William Caxton. Aqui como em toda parte mais tarde, está de fato presente o elemento de perigo racionalmente calculável, e a advertência se refere a isso.
Mas são a memória e associação da faca com a morte e o perigo, o significado simbólico do instrumento, somados à cada vez maior pacificação interna da sociedade e à gradual preponderância de sentimentos de desagrado com sua presença, que levam à limitação e suspensão final de seu uso em sociedade.
A simples vista de uma faca apontada para o rosto provoca medo: “Não voltes a faca contra o rosto, porque nisto há razão para muito medo”. Esta é a base emocional de um poderoso tabu de uma época posterior, que proíbe que se leve a faca à boca.
O caso é semelhante à proibição que, em nossa série de exemplos, foi mencionada pela primeira vez pelo escritor francês Claude Calviac em 1560: se passa uma faca a alguém, pegue-a pela ponta e lhe ofereça o cabo, “porque não seria polido agir de outra maneira”.
Neste exemplo como era tão comum até que, em fase posterior, a criança recebesse uma explicação “racional” de todas as proibições, nenhuma explicação é dada para o ritual social exceto que “não seria polido proceder de outra maneira”.
Mas não é difícil perceber o significado emocional dessa instrução: ninguém deve virar a ponta da faca na direção de alguém, como se num ataque. O mero significado simbólico desse ato, a recordação de uma ameaça belicosa, é desagradável.
Aqui, também o ritual da faca contém um elemento racional. O indivíduo poderia usar o ato de passar a faca a fim de cravá-la inesperadamente em alguém. Um ritual social é formado em torno desse perigo porque o gesto ameaçador em si se enraíza em um nível emocional, como fonte geral de desagrado, símbolo de morte e perigo.
A sociedade, que nessa época começa a limitar cada vez mais os perigos reais que ameaçam o ser humano e, em consequência, a remodelar sua vida afetiva, coloca também cada vez mais barreiras em torno dos símbolos, dos gestos, e dos instrumentos de perigo. Aumentam, assim, as restrições e proibições ao uso da faca, juntamente com as limitações impostas ao indivíduo.
Se deixamos de lado os detalhes desse fenômeno e estudamos apenas o resultado, a forma atual do ritual da faca, descobrimos uma espantosa abundância de tabus de variada severidade. O imperativo de nunca levar a faca à boca é um dos mais sérios e mais conhecidos. Quase dispensa dizer que ele exagera em excesso o perigo real e provável, isto porque os grupos sociais, acostumados a usá-las e comer com elas, raramente se machucam ao fazê-lo.
A proibição transformou-se em um modo de distinção social. Na sensação desagradável que nos assalta à mera vista de alguém pondo uma faca na boca, tudo isto se apresenta simultaneamente: o modo geral que o símbolo desperta e o medo mais específico de degradação social que pais e educadores, desde cedo, ligaram a essa prática com suas advertências de que “isto não se faz”.
ELIAS, Norbert [1939]. O processo civilizador. Volume 1. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
Processo Civilizador
Os padrões de comportamento de nossa sociedade, gravados no indivíduo desde a mais tenra infância como uma espécie de segunda natureza e mantidos em estado de alerta por um controle social poderoso e cada vez mais rigorosamente organizado, precisam ser explicados, não em termos de finalidades humanas gerais, a-históricas, mas como algo que evoluiu da totalidade da história, das formas específicas de comportamento que se desenvolveram durante seu curso e de forças de integração que as transformaram e propagaram.
Esses padrões, tal como todo o controle de nosso comportamento, como a estrutura de nossas funções psicológicas em geral, possuem muitas camadas: em sua formação e reprodução, impulsos emocionais desempenharam um papel não menos importante que os racionais, as pulsões e sentimentos não menos que as funções do ego.
Há muito tempo se costuma explicar o controle ao qual o comportamento individual está sujeito em nossa sociedade como alguma coisa essencialmente racional, fundamentada exclusivamente em considerações lógicas. No entanto, a racionalização, e com ela a modelação e a explicação mais racional de tabus sociais, é apenas um lado de uma transformação que afetou toda a personalidade, afetando as pulsões e sentimentos no mesmo grau que a consciência e a reflexão.
A força motriz dessa mudança de auto-orientação individual foi fornecida por pressões surgidas do entrelaçamento em muitas esferas de atividades humanas, pressões que atuaram numa direção dada, ocasionando mudanças na forma dos relacionamentos e em todo o tecido social.
Essa racionalização foi acompanhada de uma enorme diferenciação nas cadeias funcionais e de uma correspondente mudança na organização da força física. Sua precondição foi a elevação do padrão de vida e do nível de segurança, ou, em outras palavras, uma maior proteção contra os ataques ou a destruição física e, assim, contra os medos incontroláveis que afetavam com muito mais força os indivíduos que eram membros de sociedades com monopólios menos estáveis de força e divisão menos acentuada das funções.
No presente, estamos tão acostumados à existência desses monopólios mais estáveis de força e da maior previsibilidade da violência deles resultante, que mal nos damos conta de sua importância para a estrutura de nossa conduta e personalidade.
Mal compreendemos com que rapidez o que denominamos de nossa “razão”, este direcionamento relativamente previdente e diferenciado de nossa conduta, com seu alto grau de controle de emoções, desmoronaria ou entraria em colapso se as tensões que induzem ansiedade em nós e em volta de nós mudassem, se os medos que nos afetam a vida de repente se tornassem muito mais fortes ou fracos ou, como em muitas sociedades mais simples, as duas coisas sucedessem ao mesmo tempo, ora mais fortes, ora mais fracos.
Só quando deslindamos essas conexões é que ganhamos acesso ao problema da conduta e de seu controle pelo código social vigente em determinada época. O grau de ansiedade, tal como toda a economia do prazer, difere em todas as sociedades, em todas as classes e fases históricas.
A fim de compreender o controle da conduta que a sociedade impõe a seus membros, não basta conhecer as metas racionais que podem ser referidas para explicar seus comandos e proibições. Temos que explorar até sua origem os medos que induzem os membros dessa sociedade, e acima de tudo, os guardiães de seus preceitos, a controlar a conduta dessa maneira.
Só obtemos uma melhor compreensão das mudanças de conduta e sentimentos numa direção civilizadora, portanto, se nos tornarmos conscientes das mudanças na estrutura dos medos construídos, a que eles estão ligados.
A estrutura dos medos e ansiedades nada mais é que a contrapartida psicológica das restrições que pessoas exercem umas sobre as outras através do entrelaçamento de suas atividades. Os medos formam um dos canais — e dos mais importantes — através dos quais a estrutura da sociedade é transmitida às funções psicológicas individuais.
A força propulsora subjacente à mudança na economia das paixões, na estrutura dos medos e ansiedades, é uma mudança muito específica nas restrições sociais que atuam sobre o indivíduo, uma transformação específica de toda a teia de relacionamentos e, acima de tudo, da organização da força.
Com grande frequência, parece às pessoas que os códigos que lhes regulam a conduta em relação aos outros e, assim, também os medos que as motivam, são alguma coisa de fora da esfera humana.
Quanto mais profundamente imergimos nos processos históricos, no curso dos quais as proibições, bem como os medos e ansiedades, foram criados e transformados, mais aumenta uma introvisão que tem sua importância para nossos atos, bem como para nossa compreensão de nós mesmos: damo-nos conta do grau em que os medos e ansiedades que motivam as pessoas são obra do ser humano.
Para sermos exatos, a possibilidade de sentir medo, exatamente como a de sentir alegria, constitui parte inalterável da natureza humana. Mas a força, tipo e estrutura dos medos e ansiedades que ardem em fogo lento ou fulguram em chamas no indivíduo nunca dependem exclusivamente de sua própria “natureza” nem, pelo menos em sociedades mais complexas, da “natureza” no meio da qual ele vive. São sempre determinados, em última análise, pela história e estrutura real de suas relações com outras pessoas, pela estrutura da sociedade; e mudam com ela.
ELIAS, Norbert [1939]. O processo civilizador. Volume 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.