Situação Social
Todos os eventos que envolvem ou afetam seres humanos são sociais, desde a chuva ou terremoto até o nascimento e a morte, o ato de comer e defecar, etc.
Se as cerimônias mortuárias são executadas para um indivíduo, esse indivíduo está socialmente morto; a iniciação transforma socialmente um jovem em um homem, qualquer que seja sua idade cronológica.
Os eventos envolvendo seres humanos são estudados por muitas ciências. Assim, o ato de comer é objeto de análise fisiológica, psicológica e sociológica. O ato de comer é uma atividade fisiológica, quando analisado em relação à defecação, circulação sanguínea, etc. É uma situação psicológica, em relação à personalidade de uma pessoa. É uma situação sociológica, em relação aos sistemas de produção e distribuição da comunidade, aos seus agrupamentos sociais, aos seus tabus e valores religiosos.
Quando se estuda um evento como parte do campo da Sociologia, é conveniente tratá-lo como uma situação social. Portanto, uma situação social é o comportamento, em algumas ocasiões, de indivíduos como membros de uma comunidade, analisado e comparado com seu comportamento em outras ocasiões.
Desta forma, a análise revela o sistema de relações subjacente entre a estrutura social da comunidade, as partes da estrutura social, o meio ambiente físico e a vida fisiológica dos membros da comunidade. As situações sociais constituem uma grande parte da matéria-prima do antropólogo, pois são os eventos que observa.
A partir das situações sociais e de suas inter-relações numa sociedade particular, podem-se abstrair a estrutura social, as relações sociais, as instituições, etc. daquela sociedade. Através destas e de novas situações, o antropólogo deve verificar a validade de suas generalizações.
Analiso as relações entre africanos e brancos do norte da Zululândia, uma seção territorial do sistema social da África do Sul, baseando-me em dados produzidos durante dezesseis meses de pesquisa de campo, realizada entre 1936 e 1938.
A África do Sul é um Estado nacional habitado por 2.003.512 brancos, 6.597.241 africanos e vários outros grupos raciais. Esta população não forma uma comunidade homogênea porque o Estado basicamente está constituído por sua divisão em grupos raciais de vários status. Portanto, o sistema social do país consiste, predominantemente, de relações interdependentes em cada grupo e entre os vários grupos enquanto grupos raciais.
Cerca de 2/5 dos africanos da África do Sul moram em áreas reservadas, distribuídas por todo país. Apenas alguns europeus — administradores, técnicos do governo, missionários, comerciantes e recrutadores — vivem nestas reservas.
Os homens africanos costumam migrar das reservas, por curtos períodos de tempo, a fim de trabalhar para fazendeiros brancos, industriais ou se empregar como criados domésticos. Findo o trabalho, retomam às suas casas.
A comunidade de africanos de cada reserva mantém estreitas relações econômicas, políticas, bem como outros tipos de relações com o restante da comunidade africana branca do país. Por isso, ao explicitar os problemas estruturais em qualquer reserva, é preciso analisar amplamente como e em que profundidade a reserva está inserida no sistema social do país, quais relações dentro da reserva envolvem africanos brancos e como estas relações são afetadas e afetam a estrutura de cada grupo racial.
GLUCKMAN, Max [1940]. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. In: FELDMAN-BIANCO, Bela (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1987.
Sistema Social
Ao estudar um sistema social em mudança, ocupamo-nos amplamente com movimentos sociológicos, que são as relações em mudança de grupos e personalidades sociais com seu poder, interesses, conflitos e cooperação em alteração.
Um sistema social repetitivo é aquele onde os conflitos podem ser inteiramente resolvidos e a cooperação inteiramente obtida dentro do padrão do sistema.
Os indivíduos que são membros dos grupos e os participantes das relações que constituem as partes do sistema mudam, mas não há mudança no caráter dessas partes ou no padrão de sua interdependência com seus conflitos e coesão.
As crianças nascem dentro de um tal sistema, crescem, envelhecem e morrem; os membros dos grupos e os ocupantes de posições e cargos mudam; ocorrem desentendimentos; mas todas essas mudanças não transformam o sistema.
Por outro lado, um sistema social em transformação é aquele onde os conflitos podem ser apenas resolvidos parcial ou inteiramente e a cooperação é também parcial ou inteiramente atingida. Isto ocorre não somente através de mudanças nos indivíduos, que são membros dos grupos, e nos participantes das relações que constituem as partes do sistema, mas também através de mudanças no caráter dessas partes e no padrão de sua interdependência com seus conflitos e coesão.
Em geral, é difícil classificar um sistema social particular como sendo repetitivo ou em transformação. As mudanças concretas dentro de um padrão repetitivo podem acumular-se gradualmente para produzir mudanças no padrão.
Num sistema em transformação, há inúmeras mudanças repetitivas e toda uma seção de um sistema em transformação pode parecer repetitiva. Assim, as escolas numa sociedade moderna parecem ter o mesmo padrão interno durante muitos anos, apesar da saída dos alunos e professores antigos e da entrada de novos.
Além do mais, certas relações sociológicas são comuns a essas duas classes de sistema social. Não obstante, é possível distinguir teoricamente essas classes do sistema social, considerando-se a existência de uma série de relações sociológicas em sistemas repetitivos e que não são encontradas em sistemas em transformação.
Cada uma dessas classes pode ser dividida em duas subclasses de sistemas sociais: grupos de cultura homogêneos e heterogêneos. Há muitos sistemas repetitivos compostos de grupos de cultura heterogêneos. Poderíamos argumentar que todas as sociedades são de fato constituídas por grupos de cultura heterogêneos, já que sempre houve variação cultural conforme os grupos etários, status político, etc.
As mudanças ocorrem nos sistemas de grupos de cultura tanto homogêneos quanto heterogêneos somente quando há conflitos que não podem ser resolvidos e a cooperação indispensável não pode ser alcançada dentro do padrão original.
Em qualquer sociedade, personalidades sociais e grupos têm uma cultura característica. Quando conflitos são desenvolvidos e a cooperação emergente produz relações diferentes entre grupos e personalidades ou produz novos grupos e personalidades, estas relações também devem ser marcadas por uma cultura característica para fixar seus limites comparativamente a outras relações e para expressar e ser o centro de seus interesses.
Isto é, as mudanças nas relações sociológicas devem ser expressas — e são expressas — em termos de cultura. Pois unidades sociais devem agir em termos de cultura, exatamente como um indivíduo pode agir apenas através de seus hábitos mentais e comportamentais.
GLUCKMAN, Max [1940]. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. In: FELDMAN-BIANCO, Bela (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1987.
Cultura, Endocultura e Exocultura
A ciência tenta formular relações invariáveis entre tipos de eventos. Dentro deste campo geral, a Sociologia estuda as relações invariáveis entre eventos sociais. Estes eventos podem ser definidos como as ações das pessoas enquanto membros de grupos ou participantes de relações com outras pessoas numa comunidade, incluindo também o mundo físico em que as pessoas vivem e a base material usada nessas relações.
O sociólogo faz generalizações afirmando que certos eventos sociais são típicos de alguma comunidade. Essas generalizações podem deixar de descrever minuciosamente qualquer evento social concreto nessa comunidade.
Ou seja, a partir do encadeamento de eventos sociais particulares e únicos, o sociólogo abstrai tipos de eventos sociais que são considerados como representativos da comunidade que está estudando. Estes eventos típicos constituem o que proponho chamar de cultura da comunidade.
Assim, grupos de culturas diferentes são grupos cujos modos padronizados de comportamento, crenças, leis, posses materiais, etc., não são similares.
Temos que abstrair das descrições das culturas de sociedades particulares as relações invariáveis entre partes da cultura e os processos invariáveis, através dos quais a cultura funciona, e que podem ser denominados de relações sociológicas.
Estas concepções são abstratas e nunca ocorrem, na realidade, numa forma pura, pois muitas relações — inclusive as sociológicas — e muitos eventos — inclusive os sociológicos — operam para produzir os fatos que percebemos.
Podemos dizer então que, em qualquer sistema social, cultura é a forma particular sob a qual aparece uma variedade de relações sociológicas, algumas das quais são comuns a sistemas com culturas marcadamente diferentes.
Tanto as relações sociológicas quanto as estruturais são claramente distintas das relações sociais que descrevem os modos de comportamento existentes entre duas ou mais personalidades sociais ou grupos numa sociedade, isto é, as relações sociais são generalizadas no plano da cultura.
As pessoas percebem sua própria cultura parcialmente e com frequência de forma não acurada, de acordo com padrões sociológicos, e reagem com impressões e avaliações; similarmente percebem e reagem à cultura de grupos e personalidades com os quais se associam. Portanto, uma cultura percebida pelos portadores é, geralmente, muito diferente da mesma cultura descrita pelo sociólogo.
Um zulu pagão torna-se cristão. Ele não conhece todos os dogmas do cristianismo e nem todas as crenças pagãs que se espera que abandone. Acaba, portanto, agregando certos valores aos dois conjuntos de crenças. Sua, conversão é uma mudança cultural, uma alteração no comportamento padronizado de uma unidade social e enquanto tal é discutida pelo sociólogo.
Além disso, temos de explicitar as crenças e o comportamento do grupo branco que o missionário considera estar transmitindo ao zulu, e que o zulu por sua vez considera estar aceitando do missionário.
Proponho usar o termo “endocultura” para descrever a cultura de uma personalidade social ou grupo no sentido de como esta é percebida por essa personalidade ou pelos membros desse grupo.
Concomitantemente, proponho o emprego do termo “exocultura” para descrever a cultura de uma personalidade social ou grupo no sentido de como esta é percebida pelos outros membros do mesmo sistema social.
GLUCKMAN, Max [1940]. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. In: FELDMAN-BIANCO, Bela (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1987.