Cultura e Indivíduo
Nenhum ser humano existe senão fixado na cultura de sua época e lugar. O indivíduo falsamente abstraído tem sido tristemente enganador no pensamento político ocidental. Mas agora podemos começar de novo num ponto para o qual convergem as principais linhas de pensamento, no outro extremo, no fazer da cultura.
A análise cultural vê a tapeçaria inteira como um todo, o retrato e o processo da tecelagem, antes de prestar atenção aos fios individuais. Pelo menos três posições intelectuais hoje em desenvolvimento encorajam tal abordagem.
Uma, o movimento filosófico da fenomenologia, que começou considerando seriamente a questão do nosso conhecimento sobre outras pessoas. Ela coloca o indivíduo diretamente num contexto social, tratando o conhecimento como um empreendimento de construção conjunta. O conhecimento nunca é uma questão de aprendizado do indivíduo solitário sobre uma realidade exterior. Os indivíduos interagindo impõem suas construções à realidade: o mundo é socialmente construído.
O estruturalismo é um movimento convergente, cuja teoria implícita do conhecimento transcende os esforços do pensador individual, e enfoca os processos sociais do conhecimento. Em suas muitas formas, a análise estrutural, aparentada com o computador, oferece possibilidades de interpretar a cultura e de relacionar as formas culturais e sociais, possibilidades que ultrapassam qualquer abordagem que obstinadamente comece pelo indivíduo.
E, finalmente, mais próximo de nossa tarefa, o movimento sociológico chamado de etnometodologia. Ele dá por assente que a realidade é socialmente construída e também que a realidade pode ser analisada como estruturas lógicas em uso. Focaliza os procedimentos interpretativos para os método de verificação usados pelos ouvintes, para os métodos de demonstração de credibilidade usados pelos narradores e para todo o sistema explicativo que opera na vida cotidiana. Sua abordagem do teste e confirmação da informação começa a partir da ideia de que o significado está entranhado e de que ele nunca é facilmente apanhado na superfície da comunicação.
A fala é apenas um canal, e a própria fala não tem sentido a menos que seja adequada à informação buscada pelo ouvinte a partir do físico e entorno do falante — espaçamento, temporalidade, orientação, roupas, comida e assim por diante. E, é claro, isso tem de incluir os bens.
Embora no presente focalize os procedimento de interpretação, para seu desenvolvimento futuro essa abordagem certamente precisará voltar-se para a análise cultural. Pois a cultura é um padrão possível de significados herdados do passado imediato, um abrigo para as necessidades interpretativas do presente.
DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron [1979]. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.
Atividade Ritual e Consumo
O principal problema da vida social é fixar os significados de modo que fiquem estáveis por algum tempo. Sem modos convencionais de selecionar e fixar significados acordados, falta uma base consensual mínima para a sociedade.
Tanto para a sociedade indígena, quanto para nós, os rituais servem para conter a flutuação dos significados. Os rituais são convenções que constituem definições públicas visíveis.
Antes da iniciação, havia um menino, depois dela, um homem; antes do rito do casamento, havia duas pessoas livres, depois dele, duas reunidas em uma. Antes da internação no hospital, o atestado médico da doença; antes do atestado de óbito, o morto é considerado vivo; antes do encontro do cadáver, impossível a acusação de assassinato; sem testemunho formal, a calúnia não é calúnia; sem uma assinatura com testemunhas, o atestado não é válido.
Viver sem rituais é viver sem significados claros e, possivelmente, sem memórias. Alguns são rituais puramente verbais, vocalizados, não registrados; desaparecem no ar e dificilmente ajudam a restringir o âmbito da interpretação. Rituais mais eficazes usam coisas materiais, e podemos supor que, quanto mais custosa a pompa ritual, tanto mais forte a intenção de fixar significados.
Os bens, nessa perspectiva, são acessórios rituais; o consumo é um processo ritual cuja função primária é dar sentido ao fluxo incompleto dos acontecimentos. O objetivo mais geral do consumidor só pode ser construir um universo inteligível com os bens que escolhe. Como opera essa construção cognitiva?
Para começar, um universo social precisa de uma dimensão temporal demarcada. O calendário deve ser subdividido em período anuais, semestrais, mensais, semanais, diários e outros ainda mais curtos. A passagem do tempo é então carregada de significado. O calendário estabelece um início para a rotação dos deveres, para o estabelecimento de precedência, para a revisão e a renovação. Outro ano passou, um novo começo; vinte e cinco anos, um jubileu de prata; cem, duzentos anos, uma celebração de centenário ou bicentenário; há um tempo de viver e um tempo de morrer, um tempo de amar.
Os bens de consumo são usados para marcar esses intervalos. Sua variação de qualidade surge a partir da necessidade de estabelecer uma diferenciação entre o ano do calendário e o ciclo da vida. Esse argumento não nega que exista o gozo privado. Ele é desenvolvido para afirmar uma reta necessidade analítica de reconhecer como o gozo é estruturado e quanto ele deve à padronização social.
Aqueles que prezam a vida simples, apenas com os bens suficientes para uma subsistência modesta, devem tentar imaginar uma refeição padronizada, digamos o desjejum, servida em todos os momentos de refeição nos dias de semana, em todas as refeições da semana, em todas as semanas do ano, e em todas as datas, inclusive as comemorativas. A comida é um meio de discriminar valores, e quanto mais numerosas as ordens discriminadas, mais variedades de comida serão necessárias.
O mesmo quanto ao espaço. Atrelado ao processo cultural, suas divisões são carregadas de significado: casa, tamanho, o lado da rua, a distância de outros centros, limites especiais — todos são categorias conceituais. O mesmo quanto à roupa, transporte e saneamento; permitem conjuntos de marcações dentro de um referencial de espaço e de tempo.
A escolha dos bens cria continuamente certos padrões de discriminação, superando ou reforçando outros. Os bens são, portanto, a parte visível da cultura. São arranjados em perspectivas e hierarquias que podem dar espaço para a variedade total de discriminações de que a mente humana é capaz.
As perspectivas não são fixas, nem são aleatoriamente arranjadas como um caleidoscópio. Em última análise, suas estruturas são ancoradas nos propósitos sociais humanos. O consumo usa os bens para tornar firme e visível um conjunto particular de julgamentos nos processos fluidos de classificar pessoas e eventos. Sendo assim, trata-se de uma atividade ritual.
DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron [1979]. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.
Poder, Pureza e Perigo
Os rituais de pureza e de impureza dão uma certa unidade à nossa experiência. Longe de serem aberrações que afastam os fiéis do fim da religião, são atos essencialmente religiosos. Por meio deles, as estruturas simbólicas são elaboradas e exibidas à luz do dia. No quadro destas estruturas, os elementos díspares são relacionados e as experiências díspares adquirem sentido.
As noções de poluição inserem-se na vida social a dois níveis: um largamente funcional, o outro expressivo.
No primeiro nível, o mais óbvio, encontramos pessoas tentando influenciar o comportamento umas das outras. A este nível, chamam-se as leis da natureza em socorro do código moral que sancionam: esta doença é causada pelo adultério, aquela pelo incesto; este desastre meteorológico é o efeito de uma deslealdade, aquele o efeito de um ato de impiedade.
Sempre que as pessoas se obrigam umas às outras à boa cidadania, o universo colabora com elas. Descobre-se assim que certos valores morais são protegidos e certas regras sociais definidas por crenças em contágios perigosos, por exemplo, quando o olhar ou o toque de um adúltero é considerado a causa da enfermidade dos seus vizinhos ou dos seus filhos.
Não é difícil perceber a utilidade das crenças relativas à poluição num diálogo em que cada um reivindica ou contesta um dado estatuto na sociedade: mas estudando de perto estas crenças, descobrimos que os contatos que se julgam perigosos também transportam uma carga simbólica. É neste nível, mais interessante, que as noções de poluição se relacionam com a vida social.
Creio que algumas poluições servem de analogias para exprimir uma ideia genérica da ordem social. Existem crenças, por exemplo, segundo as quais cada um dos sexos constitui um perigo para o outro quando entram em contato por meio dos fluidos sexuais. De acordo com outras crenças, apenas um sexo é posto em perigo pelo contato com o outro, geralmente o sexo masculino pelo sexo feminino, mas, por vezes, o inverso.
No domínio sexual, estas noções de perigo são a expressão de uma simetria ou de uma hierarquia. É pouco provável que exprimam qualquer aspecto da relação real entre os sexos. Na minha opinião, seria melhor interpretá-las como a expressão simbólica das relações entre diferentes elementos da sociedade, como o reflexo duma organização hierárquica ou simétrica válida para todo o sistema social.
O que é válido para a poluição sexual, também o é para a poluição corporal. Os dois sexos podem servir de modelo da colaboração e da diferença existente entre as unidades sociais. De modo idêntico, o processo de ingestão pode representar a absorção política. Por vezes, os orifícios do corpo parecem representar pontos de entrada ou de saída dos grupos sociais, tal como a perfeição corporal pode simbolizar uma teocracia ideal.
Cada cultura é um universo em si. Seguindo os ensinamentos do antropólogo austríaco Franz Steiner, começo por interpretar as regras de impureza colocando-as no contexto mais vasto de toda a gama de perigos possíveis num dado universo. Tudo o que pode acontecer de desastroso a uma pessoa deve ser catalogado em função dos princípios que regem o universo específico da sua cultura.
Seja qual for a sua cultura, o indivíduo considera-se, naturalmente, o receptáculo passivo da ideia que tem do poder e do perigo no seu universo e pouco lhe interessam as modificações menores para que ele próprio possa ter contribuído. Do mesmo modo, pensamo-nos a nós mesmos como o receptáculo passivo da nossa língua materna e não nos sentimos responsáveis pelas mudanças por ela sofridas durante o nosso tempo.
O antropólogo cai na mesma armadilha se considera a cultura em estudo como um conjunto de valores há muito estabelecido. Neste sentido, nego enfaticamente que o proliferar de ideias relativas à pureza e ao contágio implique uma mentalidade ou instituições sociais rígidas. Talvez a verdade seja o contrário.
Poderia pensar-se que, numa cultura profundamente impregnada de noções de contágio e de purificação, o indivíduo se encontra oprimido por categorias rígidas de pensamento cuja manutenção depende do auxílio de punições e de regras de evitamento.
Pode parecer impossível que um tal indivíduo desvie o seu próprio pensamento dos caminhos batidos pela sua própria cultura. Como poderia ele contornar o processo do seu próprio pensamento e contemplar as suas limitações? E se não o pode fazer, como comparar a sua religião com as grandes religiões do mundo?
A reflexão sobre a impureza implica uma relação sobre a relação entre a ordem e a desordem, o ser e o não ser, a forma e a ausência dela, a vida e a morte. Onde quer que as ideias de impureza estejam fortemente estruturadas, a sua análise revela que põem em jogo estes profundos temas. É por isto que o conhecimento das regras relativas à pureza é uma boa maneira de entrar no estudo comparado das religiões.
DOUGLAS, Mary [1966]. Pureza e perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu. Lisboa: Edições 70, 1991.