Técnicas do Corpo
Entendo por técnicas do corpo as maneiras pelas quais as pessoas, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo.
Durante muitos anos tive a noção da natureza social do habitus. Ela não designa os hábitos metafísicos, a "memória" misteriosa, tema de volumosas ou curtas e famosas teses. Esses "hábitos" variam não simplesmente com os indivíduos e suas imitações, variam sobretudo com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios.
A criança, como o adulto, imita atos bem-sucedidos que ela viu ser efetuados por pessoas nas quais confia e que têm autoridade sobre ela. O ato se impõe de fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo. O indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato executado diante dele ou com ele pelos outros.
É precisamente nessa noção de prestígio da pessoa que faz o ato ordenado, autorizado, provado, em relação ao indivíduo imitador, que se verifica todo o elemento sociológico. No ato imitador que se segue, verificam-se o elemento psicológico e o elemento biológico. Mas o todo, o conjunto é condicionado pelos três elementos indissoluvelmente misturados.
Todos cometemos, e cometi durante muitos anos, o erro fundamental de só considerar que há técnica quando há instrumento. Chamo técnica um ato tradicional eficaz — e vejam que nisso não difere do ato mágico, religioso, simbólico. Ele precisa ser tradicional e eficaz.
Não há técnica e não há transmissão se não houver tradição. Eis em quê o ser humano se distingue antes de tudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral.
Mas qual é a diferença entre o ato tradicional eficaz da religião, o ato tradicional eficaz simbólico, jurídico, os atos da vida em comum, os atos morais, de um lado, e o ato tradicional das técnicas, de outro? É que este último é sentido pelo autor como um ato de ordem mecânica, física ou físico-química, e é efetuado com esse objetivo.
Nessas condições, cabe dizer simplesmente: estamos lidando com técnicas do corpo. O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do ser humano. Ou, mais exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico.
A adaptação constante a um objetivo físico, mecânico, químico — por exemplo, quando bebemos — é efetuada numa série de atos montados, e montados no indivíduo não simplesmente por ele próprio, mas por toda a sua educação, por toda a sociedade da qual faz parte, conforme o lugar que nela ocupa.
MAUSS, Marcel [1935]. As técnicas do corpo. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
Técnicas do Sono e do Repouso
A noção de que deitar numa cama é algo natural é completamente inexata. Posso vos dizer que a guerra me ensinou a dormir em toda parte, sobre montes de seixos, por exemplo, mas que jamais pude mudar de leito sem ter um momento de insônia: somente no segundo dia eu podia adormecer depressa.
O que é muito simples é que podemos distinguir as sociedades que nada têm para dormir, exceto "o chão duro", e as outras que se valem de um instrumento.
A "civilização de 15° de latitude", de que fala o etnólogo alemão Fritz Graebner, caracteriza-se, entre outras coisas, pelo uso de um apoio para a nuca, para dormir. Esse objeto é geralmente um totem, às vezes esculpido com figuras agachadas de pessoas, de animais totêmicos.
Há os povos com esteira e os povos sem esteira. Há os com travesseiros e os sem travesseiros. Há as populações que se comprimem em roda para dormir, em volta de um fogo, ou mesmo sem fogo. Há maneiras de se aquecer e de aquecer os pés. Os fueguinos, que vivem num lugar muito frio, só aquecem os pés quando dormem, apenas com um cobertor de pele.
Há, enfim, o sono em pé. Os massais conseguem dormir em pé. Eu mesmo dormi em pé, na montanha. Várias vezes dormi montado a cavalo, inclusive em marcha. Os velhos historiadores das invasões nos representam hunos e mongóis dormindo a cavalo. Isso ainda é verdade e seus cavaleiros adormecidos não detêm a marcha dos cavalos.
Há o uso do cobertor. Povos que dormem cobertos e os que dormem não cobertos. Há a rede e a maneira de dormir suspenso.
Eis aí uma grande quantidade de práticas que são ao mesmo tempo técnicas do corpo, profundas em repercussões e efeitos biológicos. Tudo isso pode e deve ser observado no trabalho de campo; centenas dessas coisas estão ainda por conhecer.
O repouso, por sua vez, pode ser repouso completo ou simples pausa: deitado, sentado, agachado etc. Tentai-vos agachar. Vereis a tortura que vos causa, por exemplo, fazer uma refeição marroquina em conformidade com os ritos.
A maneira de sentar-se é fundamental. Podeis distinguir a humanidade de cócoras e a humanidade sentada. E, nesta última, os povos com bancos e os sem bancos e estrados, os povos com assentos e os sem assentos. O assento de madeira sustentado por figuras agachadas é muito comum, fato muito significativo, em todas as regiões a 15° de latitude norte e da linha do equador dos dois continentes.
Há os povos que têm mesas e os que não as têm. A mesa, a "trapeta" grega, está longe de ser universal. Em todo o Oriente, usa-se normalmente um tapete, uma esteira. Tudo isso é bastante complicado, pois esses repousos comportam a refeição, a conversação etc.
Algumas sociedades fazem seus repousos em posições singulares. Assim, toda a África nilótica e uma parte da região do Chade, até o Tanganika, são povoadas por pessoas que, nos campos, põem-se como aves pernaltas para repousar. Alguns conseguem ficar num pé só sem ajuda, outros se apoiam num bastão.
Eis aí verdadeiros traços de civilizações formados por essas técnicas de repouso, comuns a um grande número, a famílias inteiras de povos. Nada parece mais natural a psicólogos; não sei se eles concordam inteiramente comigo, mas creio que essas posturas na savana se devem à altura das ervas à função de pastor, de sentinela etc.; elas são adquiridas com dificuldade pela educação, e conservadas.
MAUSS, Marcel [1935]. As técnicas do corpo. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
Reciprocidade
Em muitas sociedades, as trocas e os contratos se fazem sob a forma de presentes, em teoria voluntários, na verdade obrigatoriamente dados e retribuídos.
Nesses fenômenos sociais "totais", como nos propomos chamá-los, exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais, estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo; econômicas, estas supondo formas particulares da produção e do consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuição; sem contar os fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam.
Queremos considerar aqui apenas o caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e no entanto obrigatório e interessado, das prestações. Elas assumiram quase sempre a forma do regalo, do presente oferecido generosamente, mesmo quando, nesse gesto que acompanha a transação, há somente ficção, formalismo e mentira social, e quando há, no fundo, obrigação e interesse econômico.
Qual é a regra de direito e de interesse que, em certas sociedades, faz que o presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força existe na coisa dada que faz que o donatário a retribua? Eis o problema em questão.
Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, nunca se constatam, por assim dizer, simples trocas de bens, de riquezas e de produtos num mercado estabelecido entre os indivíduos.
Em primeiro lugar, não são indivíduos, são coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam; as pessoas presentes ao contrato são pessoas morais: clãs, tribos, famílias, que se enfrentam e se opõem seja em grupos frente a frente num terreno, seja por intermédio de seus chefes, seja ainda dessas duas maneiras ao mesmo tempo.
Ademais, o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São, antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras, dos quais o mercado é apenas um dos momentos, e nos quais a circulação de riquezas não é senão um dos termos de um contrato bem mais geral e bem mais permanente.
Enfim, essas prestações e contraprestações se estabelecem de uma forma sobretudo voluntária, por meio de regalos, presentes, embora elas sejam no fundo rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou pública. Uma parte considerável de nossa moral e de nossa própria vida permanece estacionada nessa mesma atmosfera em que dádiva, obrigação e liberdade se misturam.
Felizmente, nem tudo ainda é classificado exclusivamente em termos de compra e venda. As coisas possuem ainda um valor sentimental além de seu valor venal, se é que há valores que sejam apenas desse gênero. Restam ainda pessoas e classes que mantêm os costumes de outrora e quase todos nos curvamos a eles, ao menos em certas épocas do ano ou em certas ocasiões.
Toda a nossa legislação de previdência social, por exemplo, esse socialismo de Estado já realizado, inspira-se no seguinte princípio: o trabalhador deu sua vida e seu trabalho à coletividade, de um lado, a seus patrões, de outro, e, se ele deve colaborar na obra da previdência, os que se beneficiaram de seus serviços não estão quites em relação a ele com o pagamento do salário, o próprio Estado, que representa a comunidade, devendo-lhe, com a contribuição dos patrões e dele mesmo, uma certa seguridade em vida, contra o desemprego, a doença, a velhice e a morte.
As sociedades progrediram na medida em que elas mesmas, seus subgrupos e seus indivíduos, souberam estabilizar suas relações, dar, receber e, enfim, retribuir.
Para começar, foi preciso inicialmente depor as lanças. Só então se conseguiu trocar os bens e as pessoas, não mais apenas de clãs a clãs, mas de tribos a tribos, de nações a nações e, sobretudo, de indivíduos a indivíduos. Só então as pessoas souberam criar e satisfazer interesses mútuos, e, finalmente, defendê-los sem precisar recorrer às armas.
Foi assim que o clã, a tribo, os povos souberam — e é assim que amanhã, em nosso mundo dito civilizado, as classes e as nações e também os indivíduos deverão saber — se opor sem se massacrar, dando-se uns aos outros sem se sacrificar. Esse é um dos segredos permanentes de sua sabedoria e de sua solidariedade.
MAUSS, Marcel [1925]. Ensaio sobre a dádiva. In: Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.