Gueto
Em termos descritivos, o "gueto" denota uma área urbana restrita, uma rede de instituições ligadas a grupos específicos e uma constelação cultural e cognitiva — valores, formas de pensar ou mentalidades — que implica tanto o isolamento sociomoral de uma categoria estigmatizada quanto o truncamento sistemático do espaço e das oportunidades de vida de seus integrantes.
O gueto não só é o meio concreto de materialização da dominação étnico-racial por meio de uma segmentação espacial da cidade, como também é uma máquina de identidade coletiva potente, pois ajuda a incrustar e a elaborar justamente a divisão da qual é expressão de duas formas complementares e associadas.
Primeiramente, o gueto reafirma o limite entre a categoria marginalizada e a população que a circunda, uma vez que intensifica o abismo sociocultural entre elas: ele faz que seus residentes sejam objetiva e subjetivamente diferentes de outros residentes urbanos ao submetê-los a condições únicas, de maneira que os padrões de cognição e conduta sejam compreendidos como singulares ou exóticos. Isso só serve para alimentar as crenças preconceituosas já existentes.
Em segundo lugar, o gueto é um motor de combustão cultural que derrete as divisões dentro do grupo confinado e alimenta o orgulho coletivo ao mesmo tempo em que fortifica o estigma que o assola.
A armadilha espacial e institucional esconde as diferenças de classe e corrói as diferenças culturais dentro da categoria étnico-racial. Assim, o gueto escuro dos EUA também acelerou a amalgamação sociossimbólica de pardos e pretos transformando-os em uma "raça" única e também transformou a consciência racial em um fenômeno de massa, motivando a mobilização da comunidade contra a contínua exclusão de classe.
Ainda assim, essa identidade unificada acaba sendo marcada pela ambivalência, já que continua maculada pelo fato de a "guetização" promover em seus membros sentimentos de dúvida e ódio em relação a si mesmos, dissimulação de sua origem, desvalorização perniciosa de si mesmos e até a identificação fantasiosa com o dominador.
Porque a "guetização" é tipicamente ligada a etnia, segregação e pobreza, fica difícil discernir empiricamente quais das propriedades exibidas pelos habitantes do gueto são "traços culturais específicos ao gueto", em oposição às propriedades expressivas de classe, comunidade ou masculinidade.
Assim também formas culturais que são fabricadas no gueto atravessam as fronteiras e circulam pela sociedade que o circunda, onde frequentemente se transformam em sinais manifestos de rebelião cultural e excentricidade social — como se vê na fascinação de adolescentes mundo afora pelo "gangster rap" afro-americano. Isso dificulta a distinção entre formas culturais efetivamente usadas pelos residentes de guetos e a imagem pública delas que é difundida na sociedade como um todo.
É útil pensar o gueto e a comunidade étnica como duas configurações ideal-típicas situadas em extremidades opostas, em um contínuo em que diferentes grupos situam-se ou pelo qual transitam, dependendo da intensidade com que as forças do estigma, do limite, do confinamento espacial e da duplicação e completude institucional coalescem-se mutuamente e impõem-se sobre eles.
A "guetização" torna-se então uma variável de níveis múltiplos para a análise comparativa e especificação empírica. Ela pode ficar atenuada a ponto de, por meio da erosão gradativa de seus limites espaciais, sociais e mentais, involuir e tornar-se uma concentração étnica eletiva, operando como propulsora na integração estrutural e/ou assimilação cultural dentro da formação social geral.
Isso descreve bem a trajetória das Chinatowns dos Estados Unidos do começo do século XX e o status do enclave imigrante cubano em Miami, que promoveu a integração por meio do biculturalismo depois do êxodo de Mariel em 1980.
Isto também caracteriza as "Kimchee cities", para as quais os coreanos convergiram das áreas metropolitanas do Japão, e que têm uma mistura de qualidades que as tornam um híbrido de gueto e aglomeração étnica: são lugares de infâmia que surgiram a partir da inimizade e do confinamento, mas cujas populações tornaram-se um misto étnico por meio dos anos e permitiram aos coreanos socializar e casar com seus vizinhos japoneses, assim como obter cidadania japonesa por meio da naturalização.
Este esquema também se encaixa no "gueto gay", que é mais bem caracterizado como uma "comunidade quase-étnica" já que a maior parte das pessoas gay podem "passar" e não precisam ficar restritas à interação com os "seus" e ninguém é forçado a residir em áreas de concentração de instituições gay.
A dupla face do gueto como arma e escudo implica que, na medida em que sua completude institucional e autonomia minguam, seu papel protetor para o grupo subordinado diminui, restando somente a força de sua função exclusivista.
Nos casos em que residentes deixam de ter valor econômico para o grupo dominante, o encapsulamento étnico-racial pode aumentar a ponto de o gueto servir como um aparato que simplesmente aloja o grupo ou prepara-o para a pior forma de ostracismo: sua destruição física.
O primeiro cenário ilustra a evolução do "hipergueto" afro-americano na era pós-direitos civis: tendo perdido sua função de reservatório para o poder do emprego desqualificado, ele ligou-se de maneira simbiótica ao sistema carcerário hipertrofiado dos Estados Unidos, por meio de uma relação de homologia estrutural, substituição funcional e fusão cultural.
O segundo cenário foi implementado pela Alemanha nazista, entre 1939 e 1944, primeiramente para empobrecer e concentrar os judeus por meio do processo de relocação; depois, quando a deportação maciça tornou-se um incômodo, para direcioná-los aos campos de extermínio.
WACQUANT, Loïc. Que é gueto? Construindo um conceito sociológico. Revista de Sociologia e Política., Curitiba , n. 23, p. 155-164, nov. 2004 .
Criminalização da Pobreza
O projeto penal do neoliberalismo encerra um paradoxo: pretende incrementar “mais Estado” nas áreas policial, de tribunais criminais e de prisões para solucionar o aumento generalizado da insegurança objetiva e subjetiva que é, ela mesma, causada por “menos Estado” na frente econômica e social.
É precisamente devido ao fato de que as elites estatais, convertidas à nova ideologia dominante do mercado, reduzem ou abandonam as prerrogativas do Estado nos assuntos socioeconômicos que elas devem, de todas as formas, aumentar e reforçar sua missão nos assuntos de “segurança” — após terem-na reduzido abruptamente à sua única dimensão criminal — e, além disso, fazer a assepsia do crime da classe baixa nas ruas em vez de enquadrar as infrações da classe alta nas grandes corporações.
Isso porque expandir o Estado penal lhes permite abafar e conter as desordens urbanas geradas nas camadas inferiores da estrutura social pela simultânea desregulamentação do mercado de trabalho e decomposição da rede de segurança social.
Por motivos relacionados à sua longa história colonial e à sua posição subordinada na estrutura das relações econômicas internacionais — uma estrutura de dominação encoberta pela categoria hipocritamente ecumênica da “globalização” —, e apesar do enriquecimento coletivo trazido pelas décadas de industrialização, a sociedade brasileira permanece caracterizada por uma desigualdade social vertiginosa e pela pobreza disseminada.
Após a “década perdida” dos anos oitenta, marcada pela estagnação econômica e por uma constante deterioração dos principais indicadores sociais, o Brasil implementou uma série de reformas econômicas e sociais que reduziram drasticamente o papel do Estado e abriram a economia ao capital e comércio além-mar.
Juntos, a desigualdade social abissal, os serviços públicos deficientes ou inexistentes e o extremo desemprego e subemprego, no contexto de uma economia urbana polarizante e de um sistema de justiça corrupto, alimentaram o inexorável crescimento da violência criminal que tem sido a calamidade das grandes cidades do Brasil e da maioria dos países da América Latina.
Assim, estima-se que dezenas de milhares de pessoas morram por causas violentas todos os anos nos centros urbanos do continente, onde um em cada três habitantes é vítima direta ou indireta de agressão interpessoal.
O temor e a insegurança físicos se disseminaram por todas as metrópoles enquanto as batalhas entre gangues e o fogo cruzado entre a polícia e os bandidos fortemente armados se espalharam para os distritos adjacentes, devido à proximidade espacial entre ricos e pobres nas cidades brasileiras, enquanto os roubos à mão armada em ônibus, assaltos em zonas comerciais e sequestros de residentes abastados se tornaram mais comuns.
As ruas de classe média e as residências de classe alta se tornaram verdadeiras fortalezas protegidas por portões de ferro, interfones, cães de ataque, guardas armados dentro de guaritas ou por batidas policiais depois do anoitecer, enquanto as “comunidades cercadas”, isoladas da cidade por muros altos e tecnologias avançadas de vigilância, se espalharam e transformaram-se em um ingrediente desejado do status de elite. Uma enorme indústria de segurança privada cresceu para prover proteção personalizada a edifícios residenciais, empresas e clubes sociais, assim como para indivíduos ricos e suas famílias.
Praticamente todos concordam que a violência deve ser combatida. No entanto, na ausência de uma rede social de segurança que seja viável, a juventude dos bairros populares, esmagados pelo peso do desemprego e subemprego crônicos, certamente continuará a procurar qualquer meio de sobrevivência para obter bens de consumo desejados e para alcançar os valores do padrão social masculino da honra, se não para escapar da privação cotidiana.
A insegurança criminal no Brasil urbano não é atenuada mas sim agravada pela intervenção das forças defensoras da lei. O uso rotineiro da violência letal pela Polícia Militar, sob a alegação de manutenção da ordem, e o recurso habitual da Polícia Civil, responsável por investigações judiciais, à tortura para fazer os suspeitos “confessarem”, ao sequestro e à extorsão de suborno dos acusados, suas testemunhas e parentes, assim como execução sumária e “desaparecimentos” inexplicáveis, mantém um clima de terror entre as classes baixas, que são seu alvo principal, e banaliza a brutalidade do Estado.
Outro fator que complica ainda mais o problema é a estreita conexão entre hierarquia de classe e estratificação racial e a discriminação endêmica à polícia e às burocracias judiciais brasileiras.
Apesar de o Brasil ter desenvolvido um sistema flexível de relações etno-raciais baseado no fenótipo, admitindo uma multiplicidade de categorias ambíguas e permitindo uma mobilidade intra e intergeracional ao longo de um continuum de tons de pele — muito diferente do rígido padrão dicotômico dos Estados Unidos, baseado na ancestralidade —, que se traduziram na ausência de segregação rígida e de guetização, existe uma associação de longa data entre negritude e periculosidade que remete às lutas contra a escravidão e ao medo disseminado dos libertos logo depois da libertação.
Pessoas com aparência africana têm sido historicamente percebidas como física e culturalmente inclinadas à ilegalidade, depravação e imoralidade, e os negros têm sido amplamente considerados como principais responsáveis pela desordem nas cidades, tornando-os os alvos prioritários da repressão penal.
Atualmente, a percepção negativa em relação às pessoas negras contamina e incide no funcionamento da totalidade das instituições encarregadas de lidar com o crime, desde a vigilância e apreensão policial até a condução de investigações e o arquivamento de acusações, à condenação, sentença e administração da punição.
Junto com a desigualdade e marginalidade urbanas profundamente arraigadas, a violência urbana no Brasil encontra um segundo apoio importante na cultura política, que permanece marcada pela experiência de uma virulenta repressão do Estado sobre as batalhas agrárias e as lutas da classe operária, assim como pelas cicatrizes do domínio militar.
Sob tais condições, oferecer o Estado penal para responder às desordens geradas pela desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e pelo relativo e absoluto empobrecimento de seções do proletariado urbano através do aumento dos meios, alcance e intensidade da intervenção do aparelho policial e judicial contribui para perpetuar uma ditadura sobre os pobres.
O atual funcionamento da polícia e dos tribunais brasileiros é tão ineficiente, deficiente e caótico, do ponto de vista estritamente jurídico, que precisariam ser reorganizados de cima a baixo para poderem fazer emergir as mínimas normas estipuladas pelas convenções internacionais, ao menos para assegurar os níveis básicos de uniformidade e justiça.
WACQUANT, Loïc. Rumo à militarização da marginalização urbana. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 11, n.15/16, 203-220, 2007.