Economia e Mercado
O conceito de economia nasceu com os fisiocratas franceses, simultaneamente à emergência da instituição do mercado como mecanismo de oferta-procura-preço. O fenômeno, até então desconhecido, da interdependência de preços flutuantes afetou diretamente multidões de pessoas.
Esse nascente mundo dos preços resultou da expansão do comércio — instituição muito mais antiga que os mercados e independente deles — nas articulações da vida cotidiana.
Os preços, é claro, existiam antes, mas não constituíam um sistema próprio. Restringiam-se ao comércio e às finanças, pois apenas mercadores e banqueiros usavam dinheiro regularmente; uma parte muito maior da economia era rural e praticamente desprovida de comércio, que só trazia um fino gotejamento de bens na vasta massa inerte da vida de vizinhança, no senhorio feudal e na família.
Os mercados urbanos conheciam dinheiro e preços, mas a lógica de manejo desses preços era mantê-los estáveis. Não a flutuação ocasional, mas a estabilidade predominante fazia deles um fator cada vez mais importante para determinar os lucros do comércio. Tais lucros decorriam de diferenciais de preço relativamente estáveis entre pontos distantes, não de oscilações anômalas dos preços em mercados locais.
Contudo, a mera infiltração do comércio na vida cotidiana não criou por si mesma uma economia, no sentido novo e distintivo do termo; para isso, foram necessários inúmeros desenvolvimentos institucionais posteriores.
O primeiro deles foi a penetração do comércio exterior nos mercados, transformando-os gradativamente de mercados locais estritamente controlados em mercados com uma flutuação mais ou menos livre dos preços. Com o tempo, seguiu-se uma inovação revolucionária: mercados com preços flutuantes para os fatores de produção, o trabalho e a terra.
Essa mudança foi a mais radical de todas, por sua natureza e sua importância. Só depois de algum tempo diferentes preços — incluindo-se agora salários, alimentos e rendas — começaram a mostrar uma interdependência digna de nota, criando as condições que levaram as pessoas a aceitar a presença de uma realidade substantiva até então não reconhecida. Esse campo emergente da experiência foi a economia.
Toda tentativa de esclarecer o lugar que a economia ocupa na sociedade deve partir do fato de que o termo econômico, tal como habitualmente usado para descrever um tipo de atividade humana, contém dois significados, com raízes distintas e independentes uma da outra.
O primeiro significado, o formal, provém do caráter lógico da relação meios-fins, como em economizar ou conseguir algo a baixo preço; desse significado provém a definição de econômico pela escassez.
O segundo, o significado substantivo, aponta para a realidade elementar de que os seres humanos, como quaisquer outros seres vivos, não podem existir sem um meio físico que os sustente; eis a origem da definição substantiva de econômico.
O significado substantivo provém da flagrante dependência do ser humano em relação à natureza e aos seus semelhantes para sobreviver. Ele sobrevive graças a uma interação institucionalizada com o meio natural; isso é a economia, que lhe fornece os meios de satisfazer suas necessidades materiais.
Esta expressão — “necessidades materiais” — não deve ser interpretada no sentido de que as necessidades sejam exclusivamente corporais, como alimento e abrigo, por mais que estas sejam essenciais à subsistência. Tal restrição limitaria absurdamente o campo da economia.
Os meios, não as necessidades, é que são materiais. É irrelevante se os objetos úteis são necessários para evitar a fome ou são usados com fins educacionais, militares ou religiosos. Se a satisfação das necessidades depende de objetos materiais, a referência é a economia. Aqui, econômico se refere simplesmente ao processo de satisfazer necessidades materiais. Estudar a subsistência humana é estudar a economia nesse sentido substantivo do termo.
O significado formal tem uma origem inteiramente diversa. Vem da relação meios-fins. É um conceito universal que não se restringe a nenhum campo específico do interesse humano.
Os termos lógicos ou matemáticos dessa natureza são chamados formais, em contraste com as áreas específicas a que se aplicam. Tal significado é subjacente ao verbo maximizar ou — com um caráter menos técnico, porém talvez mais preciso — "obter o máximo a partir dos recursos de que se dispõe''.
A fusão dos dois significados num conceito único é irrepreensível, desde que permaneçamos conscientes das limitações do conceito assim constituído. Ligar a satisfação das necessidades materiais à escassez e ao ato de economizar e fundi-los num conceito único pode ser justificado e razoável num sistema de mercado, onde e quando ele prevalece.
Entretanto, aceitar que o conceito composto tem validade geral aumenta a dificuldade de deslocar a falácia economicista da posição estratégica que ela ocupa em nosso pensamento.
A falácia é evidente: o aspecto físico das necessidades do ser humano faz parte da condição humana; não pode existir sociedade que não possua algum tipo de economia substantiva. Por outro lado, o mecanismo de oferta-procura-preço — que chamamos mercado, em linguagem popular — é uma instituição relativamente moderna e possui uma estrutura específica.
Reduzir o âmbito do econômico especificamente aos fenômenos de mercado é eliminar a maior parte da história humana. Em contrapartida, ampliar o conceito de mercado para fazê-lo abarcar todos os fenômenos econômicos é atribuir a todas as questões econômicas as características peculiares que acompanham um fenômeno específico.
POLANYI, Karl [1950]. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
Sociedade de Mercado
A economia de mercado criou um novo tipo de sociedade. Nela, o sistema econômico ou produtivo foi confiado a um mecanismo automático.
Um mecanismo institucional passou a controlar não só os seres humanos em suas atividades cotidianas, como também os recursos da natureza. Esse instrumento do bem-estar material ficou sob o controle exclusivo dos incentivos da fome e do ganho — ou, mais precisamente, do medo de não atender às necessidades vitais e da expectativa de lucro.
Desde que nenhuma pessoa sem posses pudesse satisfazer sua fome sem primeiro vender seu trabalho no mercado, e desde que nenhum proprietário fosse impedido de comprar no mercado mais barato e vender no mais caro, o moinho cego haveria de produzir quantidades cada vez maiores de mercadorias em benefício da espécie humana.
O medo da fome entre os trabalhadores e a atração do lucro entre os patrões manteriam o vasto sistema em funcionamento. Com isso passou a existir uma "esfera econômica", bem destacada de outras instituições da sociedade.
Dado que nenhum agregado humano pode sobreviver sem o funcionamento de um aparelho produtivo, a sua incorporação numa esfera distinta e separada da sociedade teve como efeito tornar o "resto" da sociedade dependente dessa esfera.
Essa zona autônoma, por sua vez, era regulada por um mecanismo que controlava seu funcionamento. Como resultado, o mecanismo de mercado tornou-se determinante para a vida do corpo social.
Não admira que o agregado humano assim surgido tenha sido uma sociedade "econômica" num grau nunca antes alcançado. Os "motivos econômicos" reinaram supremos, num mundo próprio, e o indivíduo foi levado a neles calcar os seus atos, sob pena de ser esmagado pelo mercado avassalador.
Essa conversão forçada a uma perspectiva utilitarista distorceu fatalmente a compreensão do homem ocidental sobre si mesmo. Esse novo mundo de "motivos econômicos" baseou-se numa falácia.
Na sua essência, a fome e o ganho não são mais "econômicos" que o amor ou o ódio, o orgulho ou o preconceito. Nenhuma motivação humana é econômica em si. Não existe algo que se possa chamar de uma experiência econômica sui generis, no mesmo sentido em que o ser humano pode ter uma experiência religiosa, estética ou sexual.
O fator econômico, que está subjacente a toda a vida social, dá tão pouca origem a incentivos definidos quanto o faz a lei igualmente universal da gravidade. É certo que, se não comermos,estaremos fadados a morrer, exatamente como se fôssemos esmagados sob o peso de uma pedra. Mas a fome não se traduz automaticamente num incentivo a produzir.
A produção não é uma atividade individual, mas coletiva. Se um indivíduo tem fome, não há nada definido que lhe caiba fazer. Se levado ao desespero, talvez ele roube ou furte, mas dificilmente se poderia chamar esse ato de produtivo. No ser humano, animal político, tudo é dado por circunstâncias sociais, não pelas naturais.
O que levou o século XIX a pensar na fome e no ganho como ''econômicos" foi simplesmente a organização da produção numa economia de mercado. Nela, a fome e o ganho ligam-se à produção pela necessidade de "obter um rendimento".
É que, nesse sistema, para continuar vivo, a pessoa é obrigada a comprar bens no mercado com a ajuda da receita decorrente da venda de outros bens no mercado. O nome desses rendimentos — salários, renda, juros —varia de acordo com o que é oferecido para venda: o uso da mão de obra, da terra ou do dinheiro; o rendimento designado por lucro — a remuneração do empresário — decorre da venda de bens que atingem um preço superior ao daqueles usados na sua produção.
Assim, todos os rendimentos derivam de vendas, e todas as vendas — direta ou indiretamente — contribuem para a produção. Esta, com efeito, decorre da obtenção de um rendimento.
Desde que o indivíduo "obtenha um rendimento", ele está automaticamente contribuindo para a produção. É claro que o sistema só funciona enquanto os indivíduos têm alguma razão para se entregar à atividade de "obter um rendimento". As motivações da fome e do ganho — separadas e em conjunto — lhes fornecem essa razão. Portanto, essas duas motivações orientam-se para a produção e, por conseguinte, são chamadas "econômicas".
Tem-se a convicta impressão de que a fome e o ganho são os incentivos por excelência sobre os quais assenta qualquer sistema econômico. Mas essa é uma suposição infundada. Ao compararmos as sociedades humanas, vemos que não se recorre à fome e ao ganho como incentivos à produção, e, quando isso ocorre, eles se fundem com outras motivações poderosas.
Aristóteles tinha razão: o ser humano não é um ser econômico, mas um ser social. Não almeja salvaguardar seu interesse individual na aquisição de posses materiais, e sim garantir sua receptividade social, seu status social e seus bens sociais.
Valoriza suas posses sobretudo como um meio para atingir esses fins. Seus incentivos têm aquele caráter "misto" que associamos ao esforço para obter aprovação social — os esforços produtivos são meros concomitantes dele.
A economia do ser humano, como regra, está mergulhada em suas relações sociais. A passagem disso para uma sociedade que, ao contrário, estava mergulhada no sistema econômico, foi um fenômeno inteiramente novo.
POLANYI, Karl [1950]. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.