Estilos de Pensamento
Existem duas maneiras principais de se escrever a história do pensamento. Por um lado há o que pode ser chamado o estilo "narrativo", que simplesmente expõe a passagem das ideias de um pensador a outro e conta de maneira épica a história de seu desenvolvimento.
Por outro lado há o estilo que queremos experimentar aqui, que está baseado na sociologia do conhecimento recentemente desenvolvida. No âmago desse método está o conceito de estilo de pensamento.
A história do pensamento, desse ponto de vista, não é uma mera história das ideias, mas uma análise de diferentes estilos de pensamento enquanto crescem e se desenvolvem, fundem-se e desaparecem; e a chave para a compreensão das mudanças nas ideias deve ser encontrada nas circunstâncias sociais em mudança, principalmente no destino dos grupos ou classes sociais que são os "portadores” desses estilos de pensamento.
É a história da arte que nos fornece um termo capaz de fazer justiça à natureza especial da história do pensamento. Nela, também, o conceito de "estilo" sempre teve um importante papel, na medida em que tornou possível a classificação tanto das semelhanças como das diferenças de diversas formas de arte.
Todos aceitam a noção de que a arte se desenvolve em "estilos”, que estes "estilos” se originam num determinado tempo e num determinado lugar e que enquanto eles crescem suas tendências formais características se desenvolvem de determinada maneira.
A história moderna da arte desenvolveu um método bastante completo de classificar os principais "estilos” de arte, e de reconstruir, dentro desses estilos, o lento processo de mudança no qual pequenas modificações gradualmente culminam numa completa transformação de estilo.
O método se tornou tão exato que agora é quase sempre possível datar precisamente uma obra de arte pela simples análise de seus elementos formais.
Um historiador da arte treinado será sempre capaz de dizer, mesmo que a obra de arte lhe seja desconhecida: “Isto deve ter sido pintado em tal data por um pintor de tal escola”. Uma afirmação desse tipo é garantida como não sendo mera conjectura pelo fato de que a arte de fato se desenvolve em "estilos" e de que no interior de cada estilo há uma mudança gradual de uma fase para outra que torna possível situar uma obra de arte desconhecida.
Assim sendo nosso argumento é que o pensamento humano também se desenvolve em "estilos” e que há diferentes escolas de pensamento distinguíveis pelos diferentes modos como utilizam diferentes padrões e categorias de pensamento.
Assim deve ser perfeitamente possível “situar" um texto anônimo como se situa uma obra de arte anônima, se nós apenas nos dermos ao trabalho de reconstruir os diferentes estilos de uma determinada época e suas variações de indivíduo para indivíduo.
Contudo, mesmo a tosca divisão do pensamento em escolas "medieval", "renascentista”, "liberal” e “romântica", tão familiares na história da filosofia ou da literatura, pode dar a impressão de que o conceito de "estilo de pensamento” já é aceito de forma geral e somos na maioria dos casos impedidos de reconhecer a sua existência por dois motivos.
Um deles é que o pensamento é único, o mesmo para todos os seres humanos, exceto devido a erros ou desvios que são apenas de importância secundária. No outro extremo, o motivo — que de fato contradiz o primeiro — é que o indivíduo pensa independentemente e isoladamente de seus semelhantes. Assim as qualidades ímpares do pensamento de cada indivíduo são supervalorizadas e o significado de seu meio social para a natureza de seu pensamento é ignorado.
Nós somos ignorantes para a existência de estilos de pensamento porque nossos filósofos nos fizeram acreditar que o pensamento não se desenvolve como uma parte e uma parcela do processo histórico, mas desce sobre a humanidade como uma espécie de entidade absoluta; e nossos historiadores literários, que escreveram monografias sobre as grandes personalidades literárias, gostam de persuadir a eles mesmos de que o derradeiro manancial de todo o pensamento é a personalidade do indivíduo.
Nós não notamos diferenças vitais entre estilos de pensamento porque nós não acreditamos em sua existência. Se nós nos esforçássemos em perceber as inúmeras e leves mudanças no desenvolvimento do modo de pensar de um grupo através de sua história, a homogeneidade artificialmente imposta ou a atomização indiscriminada daria lugar a uma diferenciação mais apropriada.
Queremos ver os pensadores de um determinado período como representantes de diferentes estilos de pensamento. Queremos descrever suas maneiras diversas de enxergar as coisas como se eles refletissem as perspectivas em mudança de seus grupos; e através desse método esperamos mostrar tanto a unidade interna de um estilo de pensamento como as leves variações e modificações que o aparato conceitual do grupo todo deve sofrer quando o grupo mesmo muda sua posição na sociedade.
Isso significa que teremos que examinar todos os conceitos usados pelos pensadores de todos os diferentes grupos existentes em qualquer época em particular, cuidadosamente, a fim de verificar se eles não usam talvez termos idênticos com significados diferentes. Assim, a análise da significação será o âmago de nossa técnica.
Palavras jamais significam a mesma coisa quando usadas por diferentes grupos, ainda que no mesmo país, e leves variações de sentido nos fornecem as melhores pistas para as diferentes tendências de pensamento numa comunidade.
O que dissemos até agora implica que um estilo de pensamento englobe mais de uma área de expressão da própria personalidade humana; englobe não apenas a política, mas a arte, a literatura, a filosofia, a história e assim por diante.
Implica ainda que a força dinâmica que está por trás de seu caráter mutável fique sob a superfície concreta dos vários modos de expressão da própria personalidade.
MANNHEIM, Karl [1959]. O pensamento conservador. In: MARTINS, José (org.). Introdução crítica à sociologia rural. São Paulo: Hucitec, 1986.
Liberdade e Ordem Social
A época do liberalismo tinha por assentado o antagonismo entre a burocracia e os negócios, estes geralmente identificados com o conjunto da sociedade. O rei perdera suas prerrogativas de monarca absoluto, ou desaparecera completamente, e o Estado passara a identificar-se cada vez mais com o governo burocrático.
Surgiu, a seguir, a influência dos juristas e dos tribunais, com sua terminologia jurídica e seu conceito do Estado como entidade impessoal que podia ser parte num juízo, ou processar os indivíduos. Esta ficção legal pode servir às finalidades da lei, mas pouco contribui para a compreensão dos sistemas anteriores à formação do Estado moderno ou para a iluminação de novos caminhos.
Por isso, utilizaremos a expressão "corpo político". O amplo alcance desta expressão nos permite considerar como fenômeno puramente histórico a identificação da burocracia — inclusive as forças armadas e o poder judiciário — com o Estado; por outro lado, impede-nos de menosprezar a relevância política de outros grupos e seus respectivos líderes, que tiveram funções sociológicas similares em outros períodos históricos, as quais podem, muito provavelmente, reaparecer no futuro.
Por "corpo político" entenderemos todos os grupos e líderes que desempenham papel ativo na organização da sociedade. Pode tratar-se de representantes da livre empresa, de magistrados eleitos, de altos funcionários sindicais ou de senhores feudais do passado. Nosso conceito abrange todos esses elementos políticos que concentram em suas mãos as funções administrativas, o poder militar e a liderança social. O corpo político, entendido sociologicamente, é inerente a todas essas unidades políticas e politicamente relevantes.
Quando empregamos a expressão "politicamente relevantes", a palavra política significa "pública"; inclui assuntos de família ou de emprego somente quando passam a ser preocupações públicas numa determinada sociedade.
A tarefa dos sociólogos políticos consiste em descrever as formas de coordenação entre todos os grupos políticos que prevalecem em uma estrutura social e o problema sociológico, as relações entre os grupos e sua regulamentação, que pode ser hierárquica, federativa ou coordenadora num sentido democrático.
Nossa definição tem duas vantagens. Permite que a sociologia dê a atenção devida às forças sociais que não são regulamentadas pelo Estado no sentido tradicional, não estão controladas pela burocracia e, no entanto, podem fazer parte integrante dos processos políticos de governar, organizar, liderar, coordenar e assim por diante.
Em segundo lugar, permite descartar a antiquada concepção dual de "Estado" e "sociedade", que hoje tem pouca base na realidade. Este dualismo assimila geralmente o Estado à burocracia e identifica a sociedade com o conglomerado de vigorosas organizações que, com êxito, reivindicam os epítetos de "livres e privadas".
Outrossim, nossa terminologia combate a ideia de que a liberdade é ameaçada somente pelo poder do Estado, como se não fossem igualmente perigosas outras organizações da sociedade, que também constituem obstáculo ao desenvolvimento da individualidade e, por exemplo, desejam expandir-se além da sua esfera legítima de atividade.
Não faz sentido afirmar que a luta pela liberdade consiste em estorvar o mais possível as autoridades centrais e chamar a isto "liberdade", sem levar em conta o possível caos que poderia resultar da atividade não obstaculizada de unidades sociais menores.
O velho dualismo entre burocracia e sociedade livre tornou-se obsoleto quando suas fronteiras começaram a entrecruzar-se cada vez mais, ao mesmo tempo em que declinava a época da livre empresa, em parte como resultado das seguintes mudanças:
1. Entre os interesses privados desenvolveram-se burocracias que chegaram a igualar em força e poderio às burocracias centrais.
2. Tende a tornar-se confusa a clara distinção entre o pessoal administrativo — os "gerentes" — eleito, nomeado ou autodesignado — o chamado "independente".
3. Já não há uma clara distinção entre os diretores e gerentes privados, que foram nomeados para suas funções e seguem uma carreira bem definida, e os dirigentes publicamente eleitos ou nomeados.
Além disso, tanto as corporações públicas como as particulares executam funções que têm importância política — isto é, que afetam o interesse público. Muitos problemas são hoje resolvidos mediante uma autorregulamentação, ao passo que, antigamente, se julgava que seriam melhor resolvidos pela administração oficial. Por outro lado, existem conselhos consultivos de peritos, adidos ao serviço público, que não têm caráter burocrático.
4. Muitas instituições mercantis ou industriais, organizações operárias e outras organizações voluntárias possuem significado público; sua coordenação já não é assunto reservado para as decisões privadas.
5. O Estado atua em diversos países como sócio em sociedades de negócios "privadas" Desmoronaram-se, por conseguinte, as antigas fronteiras entre empresas públicas e privadas.
6. Finalmente — problema menos estudado — essas combinações produziram novo tipo de personalidade, em certos setores da burocracia. Esse tipo de cidadão combina a iniciativa do livre empresário com a tradição do funcionário público e pensa primordialmente em termos do bem-estar público.
Em vista disso, a velha disputa de se saber se a burocracia deve ou não existir torna-se acadêmica, pois a burocracia privada não é, em si, melhor que a estatal. Ambas podem ser melhoradas, se forem tomadas medidas adequadas, de modo que a verdadeira questão passa a ser a seguinte: Que forma de organização se adapta melhor à solução dos problemas em determinada situação? Quando, onde e até que ponto devemos centralizar ou descentralizar? Quando e onde devemos admitir ou incentivar a iniciativa privada? Onde favorecer a delegação de poderes ou a concessão de autoadministração a pequenos órgãos diretivos?
Nossa decisão não deverá ser influenciada por preconceitos a favor ou contra a administração pública, mas pela consideração da categoria, dimensão e natureza da organização, sua composição, funções, situação, perspectiva de ótima eficiência, responsabilidade e facilidade de controle democrático.
Finalmente, deveremos estudar o próprio grupo e sua organização com respeito ao lugar que ocupa, dentro do corpo político, e também suas relações com o plano de conjunto.
Depois que nos livrarmos do preconceito de que tudo o que faz o Estado e a sua burocracia é errado, mal feito e contrário à liberdade, e de que tudo o que é feito pelos indivíduos particulares é eficiente e sinônimo de liberdade, poderemos enfrentar adequadamente o verdadeiro problema.
Reduzido a uma só frase, o problema consiste em que, em nosso mundo moderno, tudo é político, o Estado está em toda parte e a responsabilidade política acha-se entrelaçada em toda a estrutura da sociedade.
A liberdade consiste não em negar essa interpenetração, mas em definir seus usos legítimos em todas as esferas, demarcando limites e decidindo qual deve ser o caminho da penetração e, em última análise, em salvaguardar a responsabilidade pública e a participação de todos no controle das decisões.
Daí se deduz a importância do controle institucional, visando a uma estratégia de reformas numa sociedade democraticamente planificada, e a necessidade da existência de uma teoria de poder baseada em princípios democráticos.
MANNHEIM, Karl [1951]. Liberdade, poder e planificação democrática. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1972.