Cidadão Liberal e Republicano
Segundo Frank Michelman, professor de teoria do Estado da Universidade de Harvard, de acordo com a concepção liberal de democracia, o status dos cidadãos define-se pelos direitos subjetivos que eles têm diante do Estado e dos demais cidadãos.
Na condição de portadores de direitos subjetivos, os cidadãos gozam da proteção do Estado na medida em que se empenham em prol de seus interesses privados dentro dos limites estabelecidos pelas leis.
Os direitos subjetivos são direitos negativos que garantem um âmbito de escolha dentro do qual os cidadãos estão livres de coações externas.
Os direitos políticos têm a mesma estrutura. Eles dão aos cidadãos a possibilidade de fazer valer seus interesses privados, ao permitir que esses interesses possam agregar-se — por meio de eleições e da composição do parlamento e do governo — com outros interesses privados até que se forme uma vontade política capaz de exercer uma efetiva influência sobre a administração.
Dessa forma os cidadãos, em seu papel de integrantes da vida política, podem controlar em que medida o poder do Estado se exerce no interesse deles próprios como pessoas privadas.
Conforme a concepção republicana, o status de cidadão não é definido por esse critério de liberdades negativas das quais só se pode fazer uso como pessoa privada.
Os direitos de cidadania, entre os quais se sobressaem os direitos de participação e de comunicação políticas, são melhor entendidos como liberdades positivas.
Eles não garantem a liberdade de coações externas, mas sim a participação em uma prática comum, cujo exercício é o que permite aos cidadãos se converterem no que querem ser: atores políticos responsáveis de uma comunidade de pessoas livres e iguais.
Nessa medida, o processo político não serve somente para o controle da atividade do Estado por cidadãos que, no exercício de seus direitos privados e de suas liberdades pré-políticas, já alcançaram uma prévia autonomia.
Também não cumpre uma função de articulação entre o Estado e a sociedade, já que o poder administrativo não representa poder originário algum, não é um poder autóctone ou um dado. Esse poder na realidade provém do poder comunicativamente gerado na prática da autodeterminação dos cidadãos e se legitima na medida em que protege essa prática por meio da institucionalização da liberdade pública.
A justificação da existência do Estado não se encontra primariamente na proteção de direitos subjetivos privados iguais, mas sim na garantia de um processo inclusivo de formação da opinião e da vontade políticas em que cidadãos livres e iguais se entendem acerca de que fins e normas correspondem ao interesse comum de todos. Dessa forma espera-se dos cidadãos republicanos muito mais do que meramente orientarem-se por seus interesses privados.
HABERMAS, Jürgen [1991]. Três modelos normativos de democracia. Lua Nova, São Paulo, n. 36, p. 39-53, 1995.
Processo Político Liberal e Republicano
De acordo com o ponto de vista liberal, a política é essencialmente uma luta por posições que assegurem a capacidade de dispor de poder administrativo.
O processo de formação da opinião e da vontade políticas na esfera pública e no parlamento é determinado pela concorrência entre atores coletivos, que agem estrategicamente com o objetivo de conservar ou adquirir posições de poder. O êxito é medido pelo assentimento dos cidadãos a pessoas e programas, quantificado pelo número de votos obtidos em eleições.
Por meio de seus votos os eleitores expressam suas preferências. Suas decisões de voto têm a mesma estrutura que as escolhas orientadas para o êxito dos participantes de um mercado. Esses votos permitem a busca de posições de poder, que os partidos políticos disputam entre si adotando uma atitude semelhante de orientação para o êxito.
Segundo Frank Michelman, "diversamente da deliberação, a interação estratégica tem por fim a coordenação mais do que a cooperação. Em última análise, o que se exige das pessoas é que não levem em conta nada que não seja o interesse próprio. Seu meio é a barganha, não o argumento. Seus instrumentos de persuasão não são reivindicações ou razões mas ofertas condicionais de serviços e abstenção. Seja formalmente incorporado num voto ou num contrato ou simplesmente efetivado de modo informal em condutas sociais, um resultado estratégico não representa um juízo coletivo da razão mas uma soma vetorial num campo de forças".
Conforme a concepção republicana, a formação da opinião e da vontade políticas no espaço público e no parlamento não obedece às estruturas dos processos de mercado mas tem suas estruturas específicas. São elas as estruturas de uma comunicação pública orientada para o entendimento. O paradigma da política no sentido de uma autodeterminação cidadã não é o do mercado e sim o do diálogo.
Para Frank Michelman, "uma concepção dialógica vê — ou talvez fosse o caso de dizer que idealiza — a política como uma atividade normativa. Ela concebe a política como uma contestação sobre questões de valores e não meramente questões de preferências. Ela entende a política como um processo de argumentação racional e não exclusivamente de vontade, de persuasão e não exclusivamente de poder, orientado para a consecução de um acordo acerca de uma forma boa e justa, ou pelo menos aceitável, de ordenar aqueles aspectos da vida que se referem às relações sociais e à natureza social das pessoas".
Desse ponto de vista estabelece-se uma diferença estrutural entre o poder comunicativo, que surge da comunicação política na forma de opiniões majoritárias discursivamente formadas, e o poder administrativo, próprio do aparato estatal.
Também os partidos, que lutam por conquistar as posições estatais de poder, se vêem obrigados a submeter-se ao estilo deliberativo e ao sentido específico dos discursos políticos.
Precisamente por isso o embate de opiniões sustentado no terreno da política tem uma força legitimadora, não somente no sentido de uma autorização para perseguir posições de poder mas também no sentido de que o exercício continuado do discurso político tem força vinculatória sobre a forma de exercer o poder político.
O poder administrativo somente pode ser empregado com base nas políticas e nos limites das leis que surgem do processo democrático.
HABERMAS, Jürgen [1991]. Três modelos normativos de democracia. Lua Nova, São Paulo, n. 36, p. 39-53, 1995.
Teoria Discursiva
O modelo republicano de democracia tem vantagens e desvantagens.
A vantagem, vejo-a em que se atém ao sentido democrata radical de uma auto-organização da sociedade por cidadãos unidos comunicativamente, e em não fazer com que os fins coletivos sejam derivados somente de um arranjo entre interesses privados conflitantes.
Vejo sua desvantagem no idealismo excessivo que há em tornar o processo democrático dependente das virtudes de cidadãos orientados para o bem comum.
Certamente os discursos de autocompreensão, aqueles em que seus participantes tentam esclarecer-se acerca de como devem entender a si mesmos como membros de uma determinada nação, como membros de um município ou de um Estado ou como habitantes de uma determinada região, acerca de que tradições devem ter continuidade, acerca de como devem tratar-se mutuamente, de como tratar as minorias e os grupos marginalizados, acerca do tipo de sociedade em que querem viver, também constituem uma parte importante da política.
Mas, em situações de pluralismo cultural e social, por trás das metas politicamente relevantes, muitas vezes escondem-se interesses e orientações valorativas que de modo algum podem-se considerar constitutivos da identidade da comunidade em seu conjunto, isto é, de uma inteira forma de vida compartilhada intersubjetivamente.
Esses interesses e orientações valorativas, que entram em conflito sem perspectiva de consenso, necessitam de um equilíbrio ou de um compromisso que não é possível alcançar-se mediante discursos éticos, ainda que os resultados se sujeitassem à condição de não transgredir os valores básicos consensuais de uma cultura. Esse equilíbrio de interesses se efetua em forma de compromissos entre partidos estribados em potenciais de poder e em potenciais de sanção.
As negociações desse tipo pressupõem, certamente, a disponibilidade para a cooperação; a saber, a disposição de, respeitando as regras do jogo, chegar a resultados que possam ser aceitos por todas as partes, ainda que por razões distintas.
Mas essa obtenção de compromissos não se efetua na forma de um discursos racional que neutralize o poder e exclua a ação estratégica. A despeito disso, a equidade dos compromissos é medida por condições e procedimentos que, por sua vez, necessitam de uma justificação racional e normativa com respeito a se são justos ou não.
Diferentemente das questões éticas, as questões de justiça não estão por si mesmas referidas a uma determinada coletividade. Pois, para ser legítimo, o direito politicamente estabelecido tem pelo menos de guardar conformidade com princípios morais que pretendem ter validade geral para além de uma comunidade jurídica concreta.
O conceito de política deliberativa somente exige uma referência empírica quando levamos em conta a pluralidade de formas de comunicação nas quais uma vontade comum pode se formar, não somente pela via de uma autocompreensão ética mas também mediante o equilíbrio de interesses e compromissos, mediante a escolha racional de meios com respeito a um fim, mediante justificações morais e exames de coerência jurídicos.
Assim, esses dois tipos de política — liberal e republicana — que Frank Michelman contrapõe em termos típico-ideais podem entrelaçar-se de forma racional. A política dialógica e a política instrumental podem entrelaçar-se no campo das deliberações, quando as correspondentes formas de comunicação estão suficientemente institucionalizadas.
Portanto, tudo gira em torno das condições de comunicação e dos procedimentos que outorgam à formação institucionalizada da opinião e da vontade políticas sua força legitimadora.
Coincidindo com o modelo republicano, a teoria do discurso concede um lugar central ao processo político de formação da opinião e da vontade comum, mas sem entender como algo secundário a estruturação em termos de Estado de Direito.
Em vez disso, ela entende os direitos fundamentais e os princípios do Estado de Direito como uma resposta consequente à questão de como institucionalizar os exigentes pressupostos comunicativos do processo democrático.
A teoria do discurso não faz a realização de uma política deliberativa depender de uma cidadania coletivamente capaz de ação, mas sim da institucionalização dos correspondentes procedimentos e pressupostos comunicativos.
Ela conta com a intersubjetividade de ordem superior de processos de entendimento que se realizam na forma institucionalizada das deliberações, nas instituições parlamentares ou na rede de comunicação dos espaços públicos políticos.
Essas comunicações desprovidas de sujeito, ou que não cabe atribuir a nenhum sujeito global, constituem âmbitos nos quais pode dar-se uma formação mais ou menos racional da opinião e da vontade acerca de temas relevantes para a sociedade como um todo e acerca das matérias que precisam de regulação.
A geração informal da opinião desemboca em decisões eleitorais institucionalizadas e em decisões legislativas por meio das quais o poder gerado comunicativamente se transforma em poder passível de ser empregado em termos administrativos.
Assim como no modelo liberal, também na teoria do discurso os limites entre o Estado e a sociedade são respeitados; mas aqui a sociedade civil, como a base social de espaços públicos autônomos, distingue-se tanto do sistema de ação econômica quanto da administração pública.
E dessa visão da democracia segue-se normativamente a exigência de um deslocamento do centro de gravidade da relação entre os recursos representados pelo dinheiro, pelo poder administrativo e pela solidariedade, dos quais as sociedades modernas se valem para satisfazer sua necessidade de integração e de regulação.
As implicações normativas saltam à vista: a força da integração social que tem a solidariedade social, não obstante não mais pode ser extraída somente das fontes da ação comunicativa, deve poder desenvolver-se com base em amplamente diversificados espaços públicos autônomos e em procedimentos de formação democrática da opinião e da vontade políticas, institucionalizadas em termos de Estado de Direito; e, com base no meio do Direito, deve ser capaz de afirmar-se também contra os outros dois poderes — o dinheiro e o poder administrativo.
HABERMAS, Jürgen [1991]. Três modelos normativos de democracia. Lua Nova, São Paulo, n. 36, p. 39-53, 1995.