Outsider
Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em certos momentos e em algumas circunstâncias, impô-las. Regras sociais definem situações e tipos de comportamento a elas apropriados, especificando algumas ações como “certas” e proibindo outras como “erradas”.
Quando uma regra é imposta, a pessoa que presumivelmente a infringiu pode ser vista como um tipo especial, alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider.
Mas a pessoa assim rotulada pode ter uma opinião diferente sobre a questão. Pode não aceitar a regra pela qual está sendo julgada e pode não encarar aqueles que a julgam competentes ou legitimamente autorizados a fazê-lo. Por conseguinte, emerge um segundo significado do termo: aquele que infringe a regra pode pensar que seus juízes são outsiders.
Há grande número de regras. Elas podem ser formalmente promulgadas na forma de lei, e, nesse caso, o poder de polícia do Estado será usado para impô-las. Em outros casos, representam acordos informais recém-estabelecidos ou sedimentados com a sanção da idade e da tradição; regras desse tipo são impostas por sanções informais de vários tipos.
De maneira semelhante, quer uma regra tenha força de lei ou de tradição, quer seja simplesmente resultado de consenso, a tarefa de impingi-la pode ser o encargo de algum corpo especializado, como a polícia ou o comitê de ética de uma associação profissional; a imposição, por outro lado, pode ser uma tarefa de todos, ou pelo menos a tarefa de todos no grupo a que a regra se aplica.
Estou interessado sobretudo no que podemos chamar de regras operantes efetivas de grupos, aquelas mantidas vivas por meio de tentativas de imposição.
Finalmente, o grau em que uma pessoa é outsider varia caso a caso. Encaramos a pessoa que comete uma transgressão no trânsito ou bebe um pouco demais numa festa como se, afinal, não fosse muito diferente de nós, e tratamos sua infração com tolerância.
Vemos o ladrão como menos semelhante a nós e o punimos severamente. Crimes como assassinato ou estupro nos levam a ver o transgressor como um verdadeiro outsider.
Da mesma maneira, alguns dos que violam regras não pensam que foram injustamente julgados. Quem comete uma infração no trânsito geralmente aprova as próprias regras que infringiu. Alcoólatras são muitas vezes ambivalentes, por vezes sentindo que aqueles que os julgam não os compreendem, outras vezes concordando que a bebida compulsiva é maléfica.
No extremo, alguns desviantes — homossexuais e usuários de substância ilícitas são bons exemplos — desenvolvem ideologias completas para explicar por que estão certos e por que os que os desaprovam e punem estão errados.
Observa-se com facilidade que diferentes grupos consideram diferentes coisas desviantes. Isso deveria nos alertar para a possibilidade de que a pessoa que faz o julgamento de desvio e o processo pelo qual se chega ao julgamento e à situação em que ele é feito possam todos estar intimamente envolvidos no fenômeno.
À medida que supõem que atos infratores de regras são inerentemente desviantes, e assim deixam de prestar atenção a situações e processos de julgamento, a visão de senso comum sobre o desvio e as teorias científicas que partem de suas premissas podem deixar de lado uma variável importante.
Se os cientistas ignoram o caráter variável do processo de julgamento, talvez, com essa omissão, limitem os tipos de teorias que podem ser desenvolvidos e o tipo de compreensão que se pode alcançar.
BECKER, Howard [1963]. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2008.
Desvio
O desvio é criado pela sociedade. Não digo isso no sentido em que é comumente compreendido, de que as causas do desvio estão localizadas na situação social do desviante ou em “fatores sociais” que incitam sua ação. Quero dizer, isto sim, que grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders.
Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal.
Como o desvio é, entre outras coisas, uma consequência das reações de outros ao ato de uma pessoa, os estudiosos do desvio não podem supor que estão lidando com uma categoria homogênea quando estudam pessoas rotuladas de desviantes.
Isto é, não podem supor que essas pessoas cometeram realmente um ato desviante ou infringiram alguma regra, porque o processo de rotulação pode não ser infalível; algumas pessoas podem ser rotuladas de desviantes sem ter de fato infringido uma regra.
Além disso, não podem supor que a categoria daqueles rotulados conterá todos os que realmente infringiram uma regra, porque muitos infratores podem escapar à detecção e assim deixar de ser incluídos na população de "desviantes” que estudam.
À medida que a categoria carece de homogeneidade e deixa de incluir todos os casos que lhe pertencem, não é sensato esperar encontrar fatores comuns de personalidade ou situação de vida que expliquem o suposto desvio.
O que é, então, que pessoas rotuladas de desviantes têm em comum? No mínimo, elas partilham o rótulo e a experiência de serem rotuladas como desviantes. Logo, estou menos interessado nas características pessoais e sociais dos desviantes que no processo pelo qual eles passam a ser considerados outsiders e suas reações a esse julgamento.
O desvio, portanto, não é uma qualidade simples, presente em alguns tipos de comportamento e ausente em outros. É antes o produto de um processo que envolve reações de outras pessoas ao comportamento.
O mesmo comportamento pode ser uma infração das regras num momento e não em outro; pode ser uma infração quando cometido por uma pessoa, mas não quando cometido por outra; algumas regras são infringidas com impunidade, outras não. Em suma, se um dado ato é desviante ou não, depende em parte da natureza do ato — isto é, se ele viola ou não alguma regra — e em parte do que outras pessoas fazem acerca dele.
Pode-se objetar que essa é uma simples crítica terminológica menor, que, afinal, podemos definir termos da maneira que quisermos e que, se alguns querem falar do comportamento de violação de regra como desviante sem referência às reações dos outros, são livres para fazê-lo. Isso é sem dúvida verdade.
Talvez valesse a pena, contudo, referir-se a tal comportamento como “comportamento de violação de regra”, e reservar o termo desviante para “aqueles rotulados como tal por algum segmento da sociedade”.
Se tomamos como objeto de nossa atenção o comportamento que vem a ser rotulado de desviante, devemos reconhecer que não podemos saber se um dado ato será categorizado como desviante até que a reação dos outros tenha ocorrido.
Desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele.
BECKER, Howard [1963]. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2008.