Racionalidade Científica e Dominação Social
A sociedade se reproduz num crescente conjunto técnico de coisas e relações que incluiu a utilização técnica — em outras palavras, a luta pela existência e a exploração do ser humano e da natureza se tornaram cada vez mais científicas e racionais.
O duplo significado de "racionalização" é relevante neste contexto. A gerência científica e a divisão científica do trabalho aumentaram enormemente a produtividade do empreendimento econômico, político e cultural. Resultado: o mais elevado padrão de vida.
Ao mesmo tempo e com os mesmos fundamentos, esse empreendimento racional produziu um padrão de mente e comportamento que justificou e absolveu até mesmo as particularidades mais destrutivas e opressivas do empreendimento. A racionalidade e a manipulação técnico-científicas estão fundidas em novas formas de controle social.
Sem dúvida, a racionalidade da ciência pura é livre de valores e não estipula quaisquer fins práticos, é "neutra" a quaisquer valores estranhos que lhe possam ser impostos. Mas essa neutralidade é um caráter positivo.
A racionalidade científica favorece uma organização social específica precisamente porque projeta mera forma que pode atender praticamente a todos os fins. A formalização e a funcionalização constituem, anteriormente a toda aplicação, a "forma pura" de uma prática social concreta.
A observação e a experimentação, a organização e a coordenação metódicas dos dados, proposições e conclusões nunca prosseguem em espaço teórico não estruturado e neutro. O projeto de cognição envolve operações sobre o objeto, ou abstração dos objetos que ocorrem num determinado universo da locução e ação. A ciência observa, calcula e teoriza de uma posição no universo.
As estrelas que o físico florentino Galileu Galilei observou eram as mesmas na antiguidade clássica, mas o universo diferente da locução e da ação — em suma, a realidade social diferente — abriu a nova direção e o novo raio de observação, bem como as possibilidades de ordenar os dados observados.
Não me preocupo aqui com a relação histórica entre racionalidade científica e social no início do período moderno. O meu propósito é demonstrar o caráter instrumentalista interno dessa racionalidade científica em virtude da qual ela é tecnologia apriorística, e o a priori de uma tecnologia específica — a saber, tecnologia como forma de controle e dominação social.
Os princípios da ciência moderna foram uma estrutura apriorística de tal modo que puderam servir de instrumentos conceituais para um universo de controle produtor automotor; o operacionalismo teórico passou a corresponder ao operacionalismo prático.
O método científico que levou à dominação cada vez mais eficaz da natureza forneceu, assim, tanto os conceitos puros como os instrumentos para a dominação cada vez maior do homem pelo homem por meio da dominação da natureza.
A razão teórica, permanecendo pura e neutra, entrou para o serviço da razão prática. A fusão resultou benéfica para ambas. Hoje, a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas como tecnologia, e esta garante a grande legitimação do crescente poder político que absorve todas as esferas da cultura.
Com relação às formas institucionalizadas de vida, a ciência — tanto pura como aplicada — teria, assim, uma função estabilizadora, estática e conservadora. Até mesmo as suas conquistas mais revolucionárias seriam apenas construção e destruição em harmonia com uma experiência e uma organização específicas da realidade.
A autocorreção contínua da ciência — a revolução de suas hipóteses que está contida em seu método — propulsiona e amplia, ela própria, o mesmo universo histórico, a mesma experiência básica.
Independentemente de como se definam verdade e objetividade, elas continuam relacionadas com os agentes humanos da teoria e da prática e com a capacidade destes para compreender e modificar o seu mundo. Esta capacidade depende, por sua vez, do quanto a matéria — seja ela o que for — seja reconhecida e entendida como aquilo que ela é em todas as formas particulares.
Nesses termos, a ciência contemporânea tem validez objetiva imensamente maior do que as suas predecessoras. Poder-se-á até acrescentar que, no presente, o método científico é o único a que se pode atribuir tal validez; a influência recíproca de hipóteses e fatos observáveis valida as hipóteses e estabelece os fatos.
O ponto que estou tentando mostrar é que a ciência, em virtude de seu próprio método e de seus conceitos, projetou e promoveu um universo no qual a dominação da natureza permaneceu ligada à dominação do ser humano — uma ligação que tende a ser fatal para esse universo em seu todo.
A natureza, cientificamente compreendida e dominada, reaparece no aparato técnico da produção e destruição que mantém e aprimora a vida dos indivíduos enquanto os subordina aos senhores do aparato. Assim, a hierarquia racional se funde com a social.
Nesse universo, a tecnologia também garante a grande racionalização da não liberdade do ser humano e demonstra a impossibilidade “técnica” de a criatura ser autônoma, de determinar sua própria vida. Isso porque essa não liberdade não parece irracional nem política, mas antes uma submissão ao aparato técnico que amplia as comodidades da vida e aumenta a produtividade do trabalho.
A racionalidade tecnológica protege, assim, em vez de cancelar, a legitimidade da dominação, e o horizonte instrumentalista da razão se abre sobre uma sociedade racionalmente totalitária.
MARCUSE, Herbert [1964]. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.
Sociedade Industrial e Controle Social
Em virtude do modo pelo qual organizou a sua base tecnológica, a sociedade industrial contemporânea tende a tornar-se totalitária. Pois "totalitária" não é apenas uma coordenação política terrorista da sociedade, mas também uma coordenação técnico-econômica não terrorista que opera através da manipulação das necessidades por interesses adquiridos. Impede, assim, o surgimento de uma oposição eficaz ao todo.
Não apenas uma forma específica de governo ou direção partidária constitui totalitarismo, mas também um sistema específico de produção e distribuição que bem pode ser compatível com o “pluralismo” de partidos, jornais, “poderes contrabalançados” etc.
A mais eficaz e resistente forma de guerra contra a libertação é a implantação das necessidades materiais e intelectuais que perpetuam formas obsoletas da luta pela existência.
A intensidade, a satisfação e até o caráter das necessidades humanas, acima do nível biológico, sempre foram precondicionados. O fato de a possibilidade de se fazer ou deixar de lado, gozar ou destruir, possuir ou rejeitar algo ser ou não tomada por necessidade depende de poder ou não ser ela vista como desejável e necessária aos interesses e instituições sociais comuns.
Neste sentido, as necessidades humanas são necessidades históricas e, no quanto a sociedade exija o desenvolvimento repressivo do indivíduo, as próprias necessidades individuais e o direito destas à satisfação ficam sujeitos a padrões críticos predominantes.
Podemos distinguir tanto as necessidades verídicas como as falsas necessidades. "Falsas" são aquelas superimpostas ao indivíduo por interesses sociais particulares ao reprimi-lo: as necessidades que perpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça.
A maioria das necessidades comuns de descansar, distrair-se, comportar-se e consumir de acordo com os anúncios, amar e odiar o que os outros amam e odeiam, pertence a essa categoria de falsas necessidades. Tais necessidades têm um conteúdo e uma função sociais determinados por forças externas sobre as quais o indivíduo não tem controle algum; o desenvolvimento e a satisfação dessas necessidades são heterônomos.
Independentemente do quanto tais necessidades se possam ter tornado do próprio indivíduo, reproduzidas e fortalecidas pelas condições de sua existência; independentemente do quanto ele se identifique com elas e se encontre em sua satisfação, elas continuam a ser o que eram de início — produtos de uma sociedade cujo interesse dominante exige repressão.
O julgamento das necessidades e sua satisfação, nas condições dadas, envolve padrões de prioridade — padrões que se referem ao desenvolvimento ótimo do indivíduo, de todos os indivíduos, sob a ótima utilização dos recursos materiais e intelectuais à disposição do ser humano. Esses termos são totalmente históricos, e sua objetividade é histórica.
"Veracidade" e "falsidade" das necessidades designam condições objetivas no quanto a satisfação universal das necessidades vitais e, além disso, a suavização progressiva da labuta e da pobreza sejam padrões universalmente válidos. Mas, como padrões históricos, não apenas variam de acordo com a área e o estágio do desenvolvimento como também só podem ser definidas em — maior ou menor — contradição com os padrões comuns. Que tribunal se poderá invocar autoridade para decidir?
Em última análise, a questão sobre quais necessidades devam ser falsas ou verdadeiras só pode ser respondida pelos próprios indivíduos, mas apenas em última análise; isto é, se e quando eles estiverem livres para dar a sua própria resposta.
Enquanto eles forem mantidos incapazes de ser autônomos, enquanto forem doutrinados e manipulados — até os seus próprios instintos — a resposta que derem a essa questão não poderá ser tomada por sua. E, por sinal, nenhum tribunal pode com justiça se arrogar o direito de decidir quais necessidades devam ser incrementadas e satisfeitas.
Qualquer tribunal do gênero é repreensível, embora a nossa revulsão não elimine a questão: como podem as pessoas que tenham sido objeto de dominação eficaz e produtiva criar elas próprias as condições de liberdade?
Quanto mais racional, produtiva, técnica e total se torna a administração repressiva da sociedade, tanto mais inimagináveis se tornam os modos e os meios pelos quais os indivíduos administrados poderão romper sua servidão e conquistar sua própria libertação.
Sem dúvida, a ideia de impor a "Razão" a uma sociedade inteira é paradoxal e escandalosa — embora se possa discutir a correção de uma sociedade que ridiculariza essa ideia enquanto transforma sua população em objetos de administração total.
Toda libertação depende da consciência de servidão e o surgimento dessa consciência é sempre impedido pela predominância de necessidades e satisfações que se tornaram, em grande proporção, do próprio indivíduo. O processo substitui sempre um sistema de precondicionamento por outro; o objetivo ótimo é a substituição de falsas necessidades por outras verdadeiras, o abandono da satisfação repressiva.
A particularidade distintiva da sociedade industrial desenvolvida é a sufocação das necessidades que exigem libertação — libertação também do que é tolerável e compensador e confortável — enquanto mantém e absolve o poder destrutivo e a função repressiva da sociedade afluente.
Aqui, os controles sociais extorquem a necessidade irresistível para a produção e o consumo do desperdício; a necessidade de trabalho estupefaciente onde não mais existe necessidade real; a necessidade de modos de descanso que mitigam e prolongam essa estupefação; a necessidade de manter liberdades decepcionantes como as de livre competição a preços administrados, uma imprensa livre que se autocensura, a livre escolha entre marcas e engenhocas.
MARCUSE, Herbert [1964]. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.