Harold Garfinkel

Etnometodologia

Do ponto de vista da teoria sociológica, a ordem moral consiste nas atividades cotidianas regidas por regras. Os membros de uma sociedade encontram e conhecem a ordem moral como cursos de ação percebidos como normais — cenas familiares de afazeres cotidianos, o mundo da vida cotidiana, conhecido junto com os outros e com eles tomado como dado.

As cenas familiares das atividades cotidianas, tratadas pelos membros como "fatos naturais da vida'', são uma massa de fatos da existência diária dos membros, tanto como um mundo real quanto como um produto de atividades em um mundo real.

Esse mundo constitui o objeto problemático da sociologia, ele entra na própria constituição da atitude sociológica e exerce uma estranha e obstinada soberania sobre as reivindicações dos sociólogos de explicá-lo adequadamente.

Apesar da centralidade desse tópico, a imensa literatura contém poucos dados e poucos métodos através dos quais as características essenciais das "cenas familiares" socialmente reconhecidas podem ser detectadas e relacionadas a dimensões da organização social.

Embora os sociólogos tomem cenas estruturadas da vida cotidiana como ponto de partida, eles raramente vêem, como tarefa de investigação sociológica em si, a questão geral de como é possível um tal mundo de senso comum. Ao invés disso, a possibilidade do mundo cotidiano ou é estabelecida por representação teórica, ou meramente assumida.

Para relatarem as características estáveis das atividades cotidianas, é comum os sociólogos selecionarem cenários familiares, tais como casas de família ou locais de trabalho, e indicarem as variáveis que contribuem para suas características estáveis.

Assim como de costume, um conjunto de considerações não é examinado: as características contextuais socialmente padronizadas e padronizantes, “vistas, mas não notadas”, esperadas das cenas cotidianas.

O membro da sociedade usa as expectativas contextuais como esquema de interpretação. Ao usá-las, as aparências reais são reconhecidas e entendidas por eles como sendo “aparências de eventos familiares”.

É possível demonstrar que o membro responde a esse contexto, mas, ao mesmo tempo, não consegue dizer especificamente em que consistem essas expectativas. Quando o perguntamos sobre elas, ele tem pouco ou nada a dizer.

Para que essas expectativas contextuais se tornem visíveis, é necessário, ou estranhar o caráter de "vida normal" das cenas cotidianas, ou tornar-se estranho a essas cenas. Como o pesquisador austríaco Alfred Schütz mostrou, é necessário que haja um "motivo especial" para fazê-las se tornarem problemáticas.

No caso dos sociólogos, esse "motivo especial" consiste na tarefa programática de se tratar como questão de interesse teórico as circunstâncias práticas de um membro da sociedade, o que inclui o caráter moralmente necessário, do ponto de vista do membro, de muitas das características contextuais dessas circunstâncias.

Os contextos vistos, mas não notados das atividades cotidianas, são tornados visíveis e descritos a partir de uma perspectiva em que as pessoas vivem as vidas que vivem, têm os filhos que têm, sentem os seus sentimentos, pensam os seus pensamentos, iniciam as relações que iniciam, tudo de modo a permitir que o sociólogo solucione seus problemas teóricos.

Os estudos etnometodológicos tentam detectar algumas expectativas que dão às cenas comuns seu caráter familiar, de “vida como de costume”, e também tentam relacioná-las às estruturas sociais estáveis das atividades cotidianas.

As operações que uma pessoa teria de executar para multiplicar as características sem sentido dos ambientes percebidos, para produzir e manter um estado de perplexidade, consternação e confusão, para produzir os afetos socialmente estruturados de ansiedade, vergonha, culpa e indignação, e para produzir uma interação desorganizada devem nos dizer algo sobre como as estruturas das atividades cotidianas são normal e rotineiramente produzidas e mantidas.

Os estudos etnometodológicos buscam tratar atividades práticas, circunstâncias práticas e raciocínio sociológico prático como tópicos de estudo empírico e, ao dedicarem às atividades mais comuns do cotidiano a atenção usualmente dispensada a eventos extraordinários, procuram estudá-las como fenômenos em si.

A recomendação central desses estudos é a de que as atividades pelas quais os membros produzem e gerenciam situações de afazeres cotidianos organizados são idênticas aos procedimentos empregados pelos membros para tornar essas situações relatáveis.

O sentido ou o fato reconhecível, ou o caráter metódico, ou a impessoalidade, ou a objetividade dos relatos não são independentes das ocasiões socialmente organizadas de seus usos. Suas características racionais consistem no que os membros fazem com os relatos, no que "entendem" deles nas ocasiões reais socialmente organizadas de seus usos.

Os relatos dos membros estão reflexiva e essencialmente vinculados, pelas suas características racionais, às ocasiões socialmente organizadas de seus usos, visto que são características das ocasiões socialmente organizadas de seus usos.

Esse vínculo estabelece o tópico central dos estudos etnometodológicos: a relatabilidade racional das ações práticas enquanto realização prática contínua.

Uso o termo “etnometodologia” para me referir à investigação das propriedades racionais de expressões que variam o sentido dependendo do contexto e outras ações práticas como realizações contínuas e contingentes de práticas engenhosas da vida cotidiana.

GARFINKEL, Harold [1967]. Estudos de etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 2018.

Análise Etnometodológica

Os estudantes foram instruídos a desenvolverem um experimento sociológico: iniciar uma conversa normal com um conhecido e, sem indicar que aquilo que se estava perguntando era de alguma forma incomum, insistir que a pessoa esclarecesse o sentido das observações de lugar-comum.

Eles relataram exemplos cotidianos de conversas desse tipo. A seguir temos três excertos típicos de seus relatos.

Caso 1

O motorista estava contando ao estudante sobre um pneu que havia furado a caminho do trabalho no dia anterior.

Motorista: “Tive um pneu furado.”

Estudante: “Como assim, teve um pneu furado?”

O motorista pareceu ficar momentaneamente atordoado. Então, respondeu com hostilidade: "Como assim 'como assim'? Um pneu furado é um pneu furado. É exatamente isso o que eu quis dizer. Nada demais. Que pergunta maluca!"

Caso 2

O vizinho acenou alegremente.

Vizinho: “Como vai?”

Estudante: “Como vou em relação a quê? À minha saúde, às minhas finanças, aos meus trabalhos de escola, ao meu equilíbrio mental, ao meu...?”

O vizinho, com o rosto vermelho e subitamente descontrolado, interrompeu: “Olhe aqui! Só estava tentando ser educado. Francamente, não ligo a mínima para como você vai.”

Caso 3

Na sexta-feira à noite meu namorado e eu estávamos assistindo televisão. Ele observou que estava cansado.

Estudante: “Cansado como? Fisicamente, mentalmente ou está apenas entediado?"

Namorado: “Não sei. Acho que é mais fisicamente.”

Estudante: “Você quer dizer que seus músculos ou seus ossos estão doendo?”

Namorado: “Acho que sim. Não seja tão técnica.”

Depois de assistir TV por mais algum tempo.

Namorado: “Todos esses filmes antigos têm o mesmo tipo de cama feita de ferro.”

Estudante: “Como assim? Você quer dizer todos os filmes antigos, alguns deles, ou apenas os que você já viu?”

Namorado: “O que há com você? Você sabe o que quero dizer.”

Estudante: “Gostaria que você fosse mais específico.”

Namorado: “Você sabe o que quero dizer! Vá para o inferno!”

Para conduzirem suas atividades cotidianas, as pessoas se recusam a permitir umas às outras que entendam "aquilo do que realmente estão falando" dessa forma.

A antecipação de que as pessoas irão entender, a ocasionalidade das falas, a especial vagueza das referências, o sentido retrospectivo-prospectivo de uma ocorrência presente, a espera de algo posterior para se entender o que foi dito antes, são propriedades sancionadas do discurso comum.

Elas fornecem um contexto de características vistas, mas não notadas do discurso comum, através do qual falas reais são reconhecidas como eventos de uma conversa comum, razoável, compreensível e simples.

As pessoas necessitam dessas propriedades do discurso como condições, sob as quais a elas mesmas é concedido o direito e concedem aos outros o direito de afirmarem que conhecem aquilo sobre o que estão conversando e que aquilo que eles estão dizendo é compreensível e deve ser compreendido.

Em resumo, a presença vista, mas não notada das propriedades é usada para dar às pessoas o direito de conduzirem suas conversas sem interferência. Afastamentos desse uso provocam tentativas imediatas de se restaurar o estado correto das coisas.

GARFINKEL, Harold [1967]. Estudos de etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 2018.