Sociação
A sociedade em geral se refere à interação entre indivíduos. Essa interação sempre surge com base em certos impulsos ou em função de certos propósitos.
Os instintos eróticos, os interesses objetivos, os impulsos religiosos e propósitos de defesa ou ataque, de ganho ou jogo, de auxílio ou instrução, e incontáveis outros, fazem com que o ser humano viva com outros seres humanos, aja por eles, com eles, contra eles, organizando desse modo, reciprocamente, as suas condições — em resumo, para influenciar os outros e para ser influenciado por eles.
A importância dessas interações está no fato de obrigar os indivíduos, que possuem aqueles instintos, interesses, etc., a formarem uma unidade — precisamente, uma "sociedade".
Tudo que está presente nos indivíduos — que são os dados concretos e imediatos de qualquer realidade histórica — sob a forma de impulso, interesse, propósito, inclinação, estado psíquico, movimento — tudo que está presente neles de maneira a engendrar ou mediar influências sobre outros, ou que receba tais influências — designo como conteúdo, como matéria, por assim dizer, da sociação.
Em si mesmos, essas matérias com as quais a vida é preenchida, as motivações que a impulsionam, não são sociais. Estritamente falando, nem fome, nem amor, nem trabalho, nem religiosidade, nem tecnologia, nem as funções e resultados da inteligência são sociais.
São fatores de sociação apenas quando transformam o mero agregado de indivíduos isolados em formas específicas de ser com e para um outro — formas que estão agrupadas sob o conceito geral de interação.
Desse modo, a sociação é a forma — realizada de incontáveis maneiras diferentes — pela qual os indivíduos se agrupam em unidades que satisfazem seus interesses.
Esses interesses, quer sejam sensuais ou ideais, temporários ou duradouros, conscientes ou inconscientes, causais ou teleológicos, formam a base das sociedades humanas.
SIMMEL, Georg [1908]. Sociologia. In: MORAES FILHO, Evaristo de (org.). Georg Simmel: Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 1983.
Conflito, Competição e Sociação
Em princípio, a importância sociológica do conflito nunca foi questionada. Admite-se que o conflito produza ou modifique grupos de interesse, uniões, organizações.
Por outro lado, sob um ponto de vista comum, pode parecer paradoxal se alguém perguntar, desconsiderando qualquer fenômeno que resulte do conflito ou que o acompanhe, se ele, em si mesmo, é uma forma de sociação.
À primeira vista, essa parece uma questão retórica. Se toda interação entre pessoas é uma sociação, o conflito — afinal, uma das mais vívidas interações e que, além disso, não pode ser exercida por um indivíduo apenas — deve certamente ser considerado uma sociação.
E de fato, os fatores de dissociação — ódio, inveja, necessidade, desejo — são as causas do conflito; este irrompe devido a essas causas. Embora por si mesmo o antagonismo não produza sociação, é um elemento sociológico quase nunca ausente dela.
Um exemplo é a competição, um tipo de conflito, de certa forma, indireto. Em geral, o uso linguístico reserva o termo “competição” somente para os conflitos que consistem em esforços paralelos de ambas as partes em relação ao mesmo prêmio. Na medida em que alguém se livra de um adversário ou o prejudica diretamente, não está competindo com ele.
O objetivo pelo qual a competição se dá em uma sociedade sempre é, presumivelmente, o favor de uma pessoa ou de terceiros. Cada uma das partes concorrente tenta, por conseguinte, aproximar-se tanto quanto possível daquele terceiro.
Usualmente, os efeitos venenosos e destrutivos da competição são enfatizados, e de resto admite-se meramente que cria certos valores como seu produto. Mas além disso, a competição tem, apesar de tudo, um enorme efeito sociativo.
A competição impele o pretendente que tem um rival — e muitas vezes só desse modo chega a tornar-se um pretendente propriamente dito — a procurar o objeto pretendido, a aproximar-se dele, a estabelecer laços com ele, a descobrir suas forças e fraquezas e ajustar-se a elas, a encontrar todas as pontes a criar novas, que possam conectá-lo ao próprio ser e obra do concorrente.
Encontramos duas pessoas competindo por uma terceira em inúmeras combinações de relacionamentos familiares e amorosos; de conversinhas e discussões sociais sobre convicções; de amizade e satisfação da própria vaidade; às vezes, claro, só por alusões, interrupções, fenômenos parciais ou marginais de um processo total.
Onde quer que aconteça, todavia, o antagonismo dos concorrentes se confronta com alguma oferta, lisonja, promessa, imposição, que põe cada um deles em relação com terceiros.
Para o vitorioso em particular, essa relação frequentemente ganha uma intensidade que não teria sem o estímulo das oportunidades de competição e sem a comparação peculiar e contínua de sua própria realização com a realização do outro, que só é possível através da competição.
SIMMEL, Georg [1908]. Sociologia. In: MORAES FILHO, Evaristo de (org.). Georg Simmel: Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 1983.
Blasé e Reserva
Não há talvez fenômeno psíquico que tenha sido tão incondicionalmente reservado à metrópole quanto a atitude blasé.
A atitude blasé resulta em primeiro lugar dos estímulos contrastantes que, em nítidas mudanças e compressão concentrada, são impostos aos nervos.
Uma vida em perseguição desregrada ao prazer torna uma pessoa blasé porque agita os nervos até seu ponto de mais forte reatividade por um tempo tão longo que eles finalmente cessam completamente de reagir.
Da mesma forma, através da rapidez e contraditoriedade de suas mudanças, impressões menos ofensivas formam reações tão violentas, estirando os nervos tão brutalmente em uma e outra direção, que suas últimas reservas são gastas; e, se a pessoa permanece no mesmo meio, eles não dispõem de tempo para recuperar a forma.
Surge assim a incapacidade de reagir a novas sensações com a energia apropriada. Isto constitui aquela atitude blasé que, na verdade, toda criança metropolitana demonstra quando comparada com crianças de meios mais tranquilos e menos sujeitos a mudanças.
Essa fonte fisiológica da atitude blasé metropolitana é acrescida de outra fonte que flui da economia do dinheiro. A essência da atitude blasé consiste no embotamento do poder de discriminar. Isto não significa que os objetos não sejam percebidos, mas antes que o significado e valores diferenciais das coisas, e daí as próprias coisas, são experimentados como destituídos de substância.
Elas aparecem a pessoa blasé num tom uniformemente plano e fosco; objeto algum merece preferência sobre outro. Esse estado de ânimo é o fiel reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada.
As grandes cidades, principais sedes do intercâmbio monetário, acentuam a capacidade que as coisas têm de poderem ser adquiridas muito mais notavelmente do que as localidades menores. É por isso que as grandes cidades também constituem a localização genuína da atitude blasé.
Nesse fenômeno, os nervos encontram na recusa a reagir a seus estímulos a última possibilidade de acomodar-se ao conteúdo e à forma da vida metropolitana.
A autopreservação de certas personalidades é comprada ao preço da desvalorização de todo o mundo objetivo, uma desvalorização que, no final, arrasta inevitavelmente a personalidade da própria pessoa para uma sensação de igual inutilidade.
Na medida em que o indivíduo submetido a esta forma de existência tem de chegar a termos com ela inteiramente por si mesmo, sua autopreservação em face da cidade grande exige dele um comportamento de natureza social não menos negativo. Essa atitude mental dos metropolitanos um para com o outro, podemos chamar, a partir de um ponto de vista formal, de reserva.
Se houvesse, em resposta aos contínuos contatos externos com inúmeras pessoas, tantas reações interiores quanto as da cidade pequena, onde se conhece quase todo mundo que se encontra e onde se tem uma relação positiva com quase todos, a pessoa ficaria completamente atomizada internamente e chegaria a um estado psíquico inimaginável.
Em parte esse fato psicológico, em parte o direito a desconfiar que as pessoas têm em face dos elementos superficiais da vida metropolitana, tornam necessária nossa reserva.
Como resultado dessa reserva, frequentemente nem sequer conhecemos de vista aqueles que foram nossos vizinhos durante anos. E é esta reserva que, aos olhos da gente da cidade pequena, nos faz parecer frios e desalmados.
SIMMEL, Georg [1902]. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973.