Mito da "Democracia Racial Brasileira"
A perpetuação, em bloco, de padrões de relações raciais elaborados sob a égide da escravidão e da dominação senhorial, tão nociva para o “homem de cor”, produziu-se independentemente de qualquer temor, por parte dos “brancos”, das prováveis consequências econômicas, sociais ou políticas da igualdade racial e da livre competição com os “negros”.
Por isso, na raiz desse fenômeno não se encontra nenhuma espécie de ansiedade ou de inquietação, nem qualquer sorte de intolerância e de ódios raciais, que essas duas condições fizessem irromper na cena histórica.
Em nenhum ponto ou momento o “homem de cor” chegou a ameaçar seja a posição do “homem branco” na estrutura de poder da sociedade inclusiva, seja a respeitabilidade e a exclusividade de seu estilo de vida.
Não se formaram, por conseguinte, barreiras que visassem impedir a ascensão do “negro”, nem se tomaram medidas para conjurar os riscos que a competição desse elemento racial pudesse acarretar para o “branco”.
Em síntese, não se esboçou nenhuma modalidade de resistência aberta consciente e organizada, que colocasse negros, brancos e mulatos em posições antagônicas e de luta. Por paradoxal que pareça, foi a omissão do “branco” — e não a ação — que redundou na perpetuação do estado em que as coisas estavam antes.
Na ânsia de prevenir tensões raciais hipotéticas e de assegurar uma via eficaz para a integração gradativa da “população de cor”, fecharam-se todas as portas que poderiam colocar o negro e o mulato na área dos benefícios diretos do processo de democratização dos direitos e garantias sociais.
Pois é patente a lógica desse padrão histórico de justiça social. Em nome de uma igualdade perfeita no futuro, acorrentava-se o “homem de cor” aos grilhões invisíveis de seu passado, a uma condição sub-humana de existência e a uma disfarçada servidão eterna.
Como não podia deixar de suceder, essa orientação gerou um fruto espúrio. A ideia de que o padrão brasileiro de relações entre “brancos” e “negros” se conformava aos fundamentos ético-jurídicos do regime republicano vigente. Engendrou-se, assim, um dos grandes mitos de nossos tempos: o mito da “democracia racial brasileira”.
Admita-se, de passagem, que esse mito não nasceu de um momento para outro. Ele germinou longamente, aparecendo em todas as avaliações que pintavam o jugo escravo como contendo “muito pouco fel” e sendo suave, doce e cristãmente humano.
Todavia, tal mito não possuiria sentido na sociedade escravocrata e senhorial. A própria legitimação da ordem social, que aquela sociedade pressupunha, repelia a ideia de uma “democracia racial”. Que igualdade poderia haver entre o “senhor”, o “escravo” e o “liberto”?
A ordenação das relações sociais exigia, mesmo, a manifestação aberta, regular e irresistível do preconceito e da discriminação raciais — ou para legitimar a ordem estabelecida, ou para preservar as distâncias sociais em que ela se assentava.
Com a Abolição e a implantação da República, desapareceram as razões psicossociais, legais ou morais que impediam a objetivação de semelhante ideia. Então, operou-se uma reelaboração interpretativa de velhas racionalizações, que foram fundidas e generalizadas em um sistema de referência consistente com o regime republicano.
No passado, o conflito insanável entre os fundamentos jurídicos da escravidão e os mores cristãos não obstou que se tratasse o escravo como coisa e, ao mesmo tempo, se pintasse a sua condição como se fosse “humana”.
No presente, o contraste entre a ordem jurídica e a situação real da “população de cor” também não obstruiria uma representação ilusória, que iria conferir à cidade de São Paulo o caráter lisonjeiro de paradigma da democracia racial.
Tão vasto mecanismo de acomodação das elites dirigentes a uma realidade racial pungente — e por que não dizer: intolerável numa democracia — permitiu que se fechassem os olhos — quer diante do drama coletivo da “população de cor”, quer diante das obrigações imperiosas que pesavam pelo menos sobre os ombros dos antigos proprietários de escravos — para não se falar nada sobre os riscos que corre o regime democrático onde se perpetuam diferenças rigidamente aristocráticas na mentalidade e nos costumes. E, o que foi pior, imprimiu aparência consentânea ao farisaísmo racial dos “brancos”.
A hipocrisia senhorial era facilmente desmascarável; entrava no rol das matérias convencionais. O mesmo não sucedeu com o mito da “democracia racial”. Como as oportunidades de competição subsistiam potencialmente abertas ao “negro”, parecia que a continuidade do paralelismo entre a estrutura social e a estrutura racial da sociedade brasileira constituía uma expressão clara das possibilidades relativas dos diversos estoques raciais de nossa população.
Ninguém atentou para o fato de que o teste verdadeiro de uma filosofia racial democrática repousaria no modo de lidar com os problemas suscitados pela destituição do escravo, pela desagregação das formas de trabalho livre vinculadas ao regime servil e, principalmente, pela assistência sistemática a ser dispensada à “população de cor” em geral.
Imposto de cima para baixo, como algo essencial à respeitabilidade do brasileiro, ao funcionamento normal das instituições e ao equilíbrio da ordem nacional, aquele mito acabou caracterizando a “ideologia racial brasileira”, perdendo-se por completo as identificações que o confinavam à ideologia e às técnicas de dominação de uma classe social.
O mito em questão teve alguma utilidade prática, mesmo no momento em que emergia historicamente. Ao que parece, tal utilidade se evidencia em três planos distintos.
Primeiro, generalizou um estado de espírito farisaico, que permitia atribuir à incapacidade ou à irresponsabilidade do “negro” os dramas humanos da “população de cor” da cidade, com o que eles atestavam como índices insofismáveis de desigualdade econômica, social e política na ordenação das relações raciais.
Segundo, isentou o “branco” de qualquer obrigação, responsabilidade ou solidariedade morais, de alcance social e de natureza coletiva, perante os efeitos sociopáticos da espoliação abolicionista e da deterioração progressiva da situação socioeconômica do negro e do mulato.
Terceiro, revitalizou a técnica de focalizar e avaliar as relações entre “negros” e “brancos” através de exterioridades ou aparências dos ajustamentos raciais, forjando uma consciência falsa da realidade racial brasileira.
Essa técnica não teve apenas utilidade imediata. Graças à persistência das condições que tornaram possível e necessária a sua exploração prática, ela se implantou de tal maneira que se tornou o verdadeiro elo entre as duas épocas sucessivas da história cultural das relações entre “negros” e “brancos” na cidade.
Em consequência, ela também concorreu para difundir e generalizar a consciência falsa da realidade racial, suscitando todo um elenco de convicções etnocêntricas: a ideia de que “o negro não tem problemas no Brasil”; a ideia de que, pela própria índole do povo brasileiro, “não existem distinções raciais entre nós”; a ideia de que as oportunidades de acumulação de riqueza, de prestígio social e de poder foram indistinta e igualmente acessíveis a todos, durante a expansão urbana e industrial; a ideia de que “o preto está satisfeito” com sua condição social e estilo de vida; e a ideia de que não existe, nunca existiu, nem existirá outro problema de justiça social com referência ao “negro”, excetuando-se o que foi resolvido pela revogação do estatuto servil e pela universalização da cidadania — o que pressupõe o corolário segundo o qual a miséria, a prostituição, a vagabundagem, a desorganização da família etc., imperantes na “população de cor”, seriam efeitos residuais, mas transitórios, a serem tratados pelos meios tradicionais e superados por mudanças qualitativas espontâneas.
FERNANDES, Florestan [1964]. A integração do negro na sociedade de classes. Volume 1. São Paulo: Globo, 2008.
Integração Racial no Brasil
A desagregação do regime de castas e estamental, associado à escravidão, não repercutiu diretamente nas formas de acomodação racial desenvolvidas no passado.
Não só os mecanismos de dominação racial tradicionais ficaram intatos. Mas a reorganização da sociedade não afetou, de maneira significativa, os padrões preestabelecidos de concentração racial da renda, do prestígio social e do poder.
Em consequência, a liberdade conquistada pelo “negro” não produziu dividendos econômicos, sociais e culturais. Ao contrário, dadas certas condições especificamente históricas, do desenvolvimento econômico da cidade, ela esbarrou com as pressões diretas e indiretas da substituição populacional.
As limitadas formas de sociabilidade e de vida social integrada, herdadas pela “população de cor” do regime escravocrata e senhorial, sofreram um impacto destrutivo e essa população enfrentou uma longa e intensa fase de desorganização social. Esses fenômenos contribuíram, decisivamente, para agravar os efeitos dinâmicos desfavoráveis da concentração racial da renda, do prestígio social e do poder.
Por anômalo que isso possa parecer, manteve-se inalterada uma situação de raça típica da ordem social desaparecida, formando aquela população, em sua quase totalidade, um sucedâneo da antiga plebe rural e urbana.
De outro lado, a formação e a consolidação do regime de classes não seguiram um caminho que beneficiasse a reabsorção gradual do ex-agente do trabalho escravo. A ordem social competitiva emergiu e se expandiu, compactamente, como um autêntico e fechado mundo dos brancos.
Na primeira fase da revolução burguesa — que vai, aproximadamente, da desagregação do regime escravista ao início da II Grande Guerra — ela responde aos interesses econômicos, sociais e políticos dos grandes fazendeiros e dos imigrantes.
Na segunda fase dessa revolução, inaugurada sob os auspícios de um novo estilo de industrialização e de absorção de padrões financeiros, tecnológicos e organizatórios característicos de um sistema capitalista integrado, ela se subordinou aos interesses econômicos, sociais e políticos da burguesia que se havia constituído na fase anterior — ou seja, em larga escala, aos interesses econômicos, sociais e políticos das classes altas e médias da “população branca”.
Em vez de se ajustar à ordem social competitiva, a situação de raça da “população de cor” teria permanecido inalterável, não fossem as transformações sofridas pelo fluxo da substituição populacional. O declínio progressivo mas drástico das correntes imigratórias e a intensificação das migrações internas acarretaram certas alterações no mercado de trabalho e nas técnicas de peneiramento ocupacional.
Enquanto a ordem social competitiva parecia totalmente bloqueada aos seus anseios de classificação e de ascensão sociais, o “negro” ou se retraía e se isolava, agravando os efeitos anômicos da desorganização social, imperante no “meio negro”; ou se congregava em associações e movimentos raciais, que davam vazão às suas inquietações e canalizavam, coletivamente, o clamor do “protesto negro”.
Na medida em que as pressões do mercado de trabalho foram abrindo a ordem social competitiva ao negro e ao mulato e em que se concretizaram certas oportunidades de classificação e de ascensão sociais, o negro e o mulato vão se concentrar na luta absorvente para “pertencer ao sistema”. Abandonam as “agitações raciais” e se lançam, ardorosamente, pela senda da competição egoística e individualista.
Ambos os processos tiveram, até agora, escassos reflexos na desigualdade racial. Contudo, eles assinalam certas transformações raciais na organização do horizonte cultural, do comportamento e da personalidade do “negro”.
O primeiro, porque o preparou para conhecer e reagir ao mundo em que vivia. Forneceu-lhe uma contra ideologia racial, que o preparou para desmascarar a existência e os efeitos do “preconceito de cor” e o auxiliou, eficazmente, a diminuir a distância cultural que separava seus anseios sociais das exigências da situação.
O segundo, porque deu continuidade e eficácia ao processo de reeducação, desencadeado pelos movimentos reivindicatórios, e porque reorientou suas insatisfações coletivas, concentrando-as em alvos viáveis e de efeitos profundos.
Ofereceu ao “negro” a probabilidade de irromper na cena histórica como “gente”, com novos pontos de apoio societário para competir individualmente com o “branco” e, quem sabe, para propugnar coletivamente o advento da Segunda Abolição.
FERNANDES, Florestan [1964]. A integração do negro na sociedade de classes. Volume 2. São Paulo: Globo, 2008.