Relações Comunitárias
A teoria da comunidade se deduz, segundo as determinações da completa unidade das vontades humanas, de um estado original e natural, que, apesar de uma separação empírica e conservando-se através dela, se caracteriza, diversamente, de acordo com a natureza das relações necessárias e mantidas entre os diferentes indivíduos dependentes uns dos outros.
A comunidade do sangue como unidade da existência tende e se desenvolve no sentido da comunidade de lugar, que tem a sua expressão direta na habitação comum. Esta, por seu turno, se aproxima da comunidade de espírito pela atividade e pelo governo comuns numa única direção, no mesmo espírito.
Assim como à comunidade do sangue se acham regularmente ligadas uma relação e uma participação comuns, isto é, posse da própria existência humana, assim também se ligam à comunidade de lugar, uma relação de solo e de terra e à comunidade de espírito relações comuns com lugares consagrados ou divindades reverenciadas.
As três espécies de comunidade estão estreitamente ligadas assim no espaço como no tempo e, por conseguinte, em seu desenvolvimento e em cada um de seus fenômenos particulares, como em geral na cultura humana e em sua história.
Em toda parte onde pessoas dependem umas das outras por suas vontades orgânicas e se aprovam reciprocamente, há comunidade de uma ou de outra espécie, a da primeira maneira implicando a última, ou esta se havendo formado por via de uma independência relativa diante da primeira.
Podem-se considerar, sucessivamente, estes diversos gêneros de comunidades através dos seus nomes originais e compreensíveis: o parentesco, a vizinhança e a amizade.
O parentesco tem a casa como lugar e como corpo. Aqui, é a vida comum sob um mesmo teto. A posse e o usufruto comuns dos bens, especialmente dos alimentos tirados das mesmas provisões e que se partilham em torno da mesma mesa.
A vizinhança é o caráter geral da vida comum, onde a aproximação das habitações, a linha divisória do campo, até mesmo o simples limite das terras determinam os numerosos contatos das pessoas; onde, o hábito de conviver e o conhecimento confiante e mútuo necessitam do trabalho, da ordem e da administração comum.
A amizade se distingue do parentesco e da vizinhança pela identidade das condições de trabalho e das maneiras de pensar, como efeito daquelas. Nasce, portanto, de preferência, da similitude das profissões ou da arte; vínculo estreitado e alimentado por aproximações passageiras e frequentes.
TÖNNIES, Ferdinand [1887]. Comunidade e sociedade. In: BIRNBAUM, Pierre; CHAZEL, François. Teoria sociológica. São Paulo: Editora da USP, 1977.
Relações Societárias
De acordo com a teoria da sociedade, esta é um grupo de pessoas que, vivendo e morando, como acontece na comunidade, de maneira pacífica, umas ao lado de outras, não se acham organicamente ligadas, mas organicamente separadas.
Ao passo que, na comunidade, permanecem ligadas, apesar de toda a separação, na sociedade vivem separadas, apesar de toda a ligação. Aqui, cada um é para si e se acha em estado de tensão diante de todos os demais.
Pessoa alguma fará qualquer coisa por outra, ninguém quererá conceder ou dar alguma coisa a outrem, a não ser em troca de um serviço ou de uma dádiva estimada pelo menos como equivalente à sua. É mesmo necessário que dádiva ou serviço lhe sejam mais úteis do que aquilo que ele dá, porque só o recebimento de algo que lhe pareça melhor o decidirá a fazer o bem.
A sociedade, pois, pela convenção e pelo direito natural de um agregado, é compreendida como uma soma de indivíduos, cujas vontades e domínios se acham em numerosas associações, e que permanecem, sem embargo, independentes uns dos outros e sem ação interior recíproca.
A sociedade como coletividade, sobre que deve estender-se um sistema convencional de regras, é, por isso, segundo a ideia, que dá, ilimitada. Ela derriba continuamente suas fronteiras — reais ou fortuitas.
E como cada pessoa nela procura sua própria vantagem e não aprova as outras pessoas senão na medida e pelo tempo em que estas desejam a mesma vantagem que ela própria, a relação de todos para com todos, antes e fora da convenção e, também, antes e fora de cada contrato particular, pode ser compreendida como uma hostilidade em potencial ou como uma guerra latente, abstração feita dos acordos das vontades como outros tantos pactos e tratados de paz.
E nisso reside a única concepção adequada de todas as realidades do tráfico e do comércio, em que quaisquer direitos e obrigações podem reduzir-se a puras determinações de bens e de valores e sobre a qual, por conseguinte, deve repousar toda teoria do puro direito privado ou — compreendido no sentido social — do direito natural, mesmo que ela o ignore.
Compradores e vendedores, nos seus diversos aspectos, situam-se, sempre, uns em relação aos outros, de tal maneira que cada qual deseja e tenta dar o menos possível daquilo que tem e obter o máximo possível daquilo que o outro tem.
E os verdadeiros comerciantes e negociantes fazem, por numerosos caminhos, corridas durante as quais cada um procura passar na frente do outro, e, se possível, atingir a meta em primeiro lugar; obter a colocação de sua mercadoria e em maior quantidade possível.
Por conseguinte, procuram eles, reciprocamente, empurrar-se e derrubar-se, e a perda de um é, ao mesmo tempo, o ganho do outro, como em cada troca particular, na medida em que os proprietários não trocam valores realmente iguais. Isto é a concorrência geral, que acontece em muitos outros domínios, mas em parte alguma tão claramente e tão conscientemente como no do comércio.
Mas a concorrência traz em si, como todas as formas dessa guerra, a possibilidade de seu fim. Por isso, aqueles inimigos, mesmo que isto aconteça mais dificilmente, decidem, em certas situações, como sendo de sua vantagem entender-se, deixar-se em paz, até mesmo associar-se, com vistas a um objetivo comum — em primeiro lugar e, no mais das vezes, contra um rival comum. Assim, a concorrência é limitada e transformada em coalizão.
E, por analogia com essas relações, que repousam sobre a troca de valores materiais, pode-se compreender toda sociabilidade convencional, cuja regra suprema é a polidez: uma troca de palavras e de serviços, em que cada um parece estar no lugar de todos e em que todos parecem estimar cada um como seu semelhante, mas em que, na realidade cada qual pensa em si mesmo e se ocupa, ao contrário, em fazer triunfar sobre os outros o seu ponto de vista e as suas vantagens.
TÖNNIES, Ferdinand [1887]. Comunidade e sociedade. In: BIRNBAUM, Pierre; CHAZEL, François. Teoria sociológica. São Paulo: Editora da USP, 1977.
Norma Social
Chama-se norma a uma regra geral de ação ou a uma regra qualquer de conduta.
A norma estabelece — sem especificação concreta ou em relação a casos previamente determinados — o que deve ou o que não deve acontecer, segundo esteja esse acontecer condicionado pela vontade de seres racionais, concretamente, de pessoas, para as quais a norma deve ser válida.
De um modo geral, a essência da norma pode ser compreendida como uma negação ou uma proibição, ou seja, como uma limitação da liberdade humana, pois o mandato positivo anula também a liberdade existente de agir segundo a própria vontade, ou de maneira diferente da determinada e, sobretudo, da liberdade de agir contra o mandato.
A proibição fecha um determinado caminho, permitindo, porém, todos os outros, ou seja, deixando-os abertos. O mandato fecha todos os caminhos exceto o indicado e prescrito, o qual, como caminho autorizado, é o único permitido, ao mesmo tempo em que é proibido não percorrê-lo.
Por isso, a relação entre a proibição e o mandato não é apenas uma relação de oposição, uma vez que o mandato é conjuntamente uma proibição ampliada e aumentada. Entretanto, apenas um mandato ou proibição não constitui uma norma, ainda que se dirija a muitas pessoas.
Se se ordena silêncio na mesa de banquete, ou descanso na frente de batalha, isso apenas significa que, por um tempo determinado, se deve estar calado ou quieto, mas não significa que isso deva continuar por muito tempo, nem mesmo em casos determinados.
Porém, quando se diz, por exemplo: "fica definitivamente proibido colocar panelas na mesa", ou “quando um soldado estiver na presença de um superior, deve permanecer atento e silencioso", estamo-nos referindo a normas. Sua característica essencial é, portanto, a generalidade.
Entretanto, por que algumas normas são chamadas "normas sociais"? A diferença reside não no fato de elas serem estabelecidas pela vontade conjunta de diferentes pessoas socialmente unidas entre si, mas no fato de as pessoas para as quais a norma deve ser válida serem as mesmas que as estabelecem e as desejam, baseando-se, portanto, na autolegislação, na autonomia, direta ou indiretamente.
Diretamente, quando diferentes pessoas, de antemão, estão ou se puseram de acordo para aceitar as referidas normas ou regras; indiretamente, quando reconhecem as normas estabelecidas externamente, isto é, quando as afirmam, as aplicam e lhes dão consentimento.
A tentativa de limitar a liberdade de outra pessoa constitui uma das múltiplas formas com que se tenta agir sobre a vontade dela, determinando-a ou impedindo-a, isto é, agindo de modo positivo ou negativo.
Outras formas são o pedido, o conselho, a exortação, a advertência, a requisição, a citação, o convite, a instrução, a doutrinação, a persuasão, a recomendação, a incitação, a animação, a sedução, o suborno, simples tentativas de estímulo, de dar oportunidade a alguém por meio de palavras faladas ou escritas ou manifestadas de outro modo qualquer de fazer ou omitir.
As palavras podem reforçar sua influência através de ações e, em determinadas circunstâncias, podem mesmo ser substituídas por gestos e contatos, como, por exemplo: o rogo com as mãos estendidas; o abraço nos joelhos da pessoa a quem se roga, prostrando-se de joelhos ou arrojando-se ao solo; o conselho com o rosto alegre, pensativo ou triste; a exortação com empurrões, puxões de orelha e tapas; a recomendação ou a incitação com efeitos sobre os sentidos: figuras, imagens, sons.
Todas estas formas podem ser reforçadas mediante palavras de diversos conteúdos: por meio de elogios e censuras, de carícias e repreensões e, sobretudo, por intermédio de promessas e ameaças.
Assim, em que se diferenciam essencialmente o mandar e o proibir das outras classes de tentativas de modificação da vontade de outra ou outras pessoas? No fato de constituírem uma tentativa de necessidade, ou seja, que se produz com a esperança e com o propósito de obter, por meio da ou das palavras, uma ação ou uma omissão como consequência certa e segura das mesmas, estando essa esperança unida com a confiança que desperta em uma ou várias pessoas o sentimento de “querer” ou do “não poder ser de outro modo”.
Esse sentimento se expressa na frase: "eu tenho que" e, mais precisamente ainda, na frase: "eu devo", as quais, juntamente com o sentimento da necessidade, indicam que a referida necessidade está dada — ocasionada — por outra vontade, ainda que também seja possível apelar indiretamente para a própria vontade como se se tratasse dessa outra vontade.
Se toda negação é considerada hostil, então o mandar e o proibir são também algo hostil. Todas as demais classes de tentativas para induzir uma pessoa a fazer alguma coisa contra vontade, são amistosas quando não afetam a liberdade desse outro de atuar segundo seu impulso, ou de qualquer outro modo, quando só manifestam desejos — egoístas ou não — que o outro pode satisfazer ou deixar de satisfazer segundo seu capricho.
TÖNNIES, Ferdinand [1931]. Normas sociais: características gerais. In: CARDOSO, Fernando Henrique; IANNI, Octavio. Homem e sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1965.