Representação do Eu
Uso o termo "representação" para me referir a toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência.
O quadro de referência conceitual que utilizo aqui é o da linguagem teatral. Falo de atores e plateias; de rotinas e papéis; de representações se realizando ou sendo mal sucedidas; de insinuações, cenários e bastidores; de necessidades, habilidades e técnicas dramatúrgicas. Trata-se de uma simples analogia entre o teatro e a vida cotidiana.
Estou interessado na estrutura dos encontros sociais — a estrutura daquelas entidades da vida social que surgem sempre que as pessoas entram na presença física imediata umas das outras.
O fator fundamental nesta estrutura é a manutenção de uma única definição da situação, definição que tem de ser expressa, e esta expressão mantida em face de uma grande quantidade de possíveis rupturas.
Um personagem representado num teatro não é real, em certos aspectos, nem tem a mesma espécie de consequências reais que o personagem inteiramente inventado, executado por um trapaceiro. Mas a encenação bem sucedida de qualquer um dos dois tipos de falsas figuras implica no uso de técnicas verdadeiras, as mesmas técnicas graças às quais as pessoas na vida diária mantêm suas situações sociais reais.
Os indivíduos que realizam uma interação frente a frente num palco de teatro devem satisfazer a exigência fundamental das situações reais. Devem expressivamente manter uma definição da situação: mas fazem isto em circunstâncias que lhes facilitaram criar uma terminologia adequada às tarefas de interação das quais todos nós compartilhamos.
A noção geral de que fazemos uma representação de nós mesmos para os outros não é nenhuma novidade. O que deveria ser acentuado, no entanto, é que a própria estrutura do "eu" pode ser considerada segundo o modo como nos arranjamos para executar estas representações na nossa sociedade.
Por exemplo, em presença de outros, o indivíduo geralmente inclui em sua atividade sinais que acentuam e configuram de modo impressionante fatos confirmatórios que, sem isso, poderiam permanecer despercebidos ou obscuros. Pois se a atividade do ator tem de tornar-se significativa para os outros, ele precisa mobilizá-la de modo tal que expresse, durante a interação, o que ele precisa transmitir.
De fato pode-se exigir que a pessoa não somente expresse suas pretensas qualidades durante a interação, mas também que o faça durante uma fração de segundo na interação.
Assim, se um árbitro de futebol quer dar a impressão de que está seguro de seu julgamento, deve abster-se do momento de pensamento que lhe poderia dar a certeza de sua decisão. Tem de tomar uma decisão instantânea de modo que o público fique certo de que ele está seguro de seu julgamento.
Quando o indivíduo se apresenta diante dos outros, seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade e até realmente mais do que o comportamento do indivíduo como um todo.
Na medida em que uma representação ressalta os valores oficiais comuns da sociedade em que se processa, podemos considerá-la, à maneira do sociólogo francês Émile Durkheim, como uma cerimônia, um rejuvenescimento e reafirmação expressivos dos valores morais da comunidade.
GOFFMAN, Erving [1956]. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
Ator e Personagem
O indivíduo pode ser dividido em dois papéis fundamentais: como ator, um atormentado fabricante de impressões envolvido na tarefa demasiado humana de encenar uma representação; e como personagem, como figura, tipicamente uma figura admirável, cujo espírito, força e outras excelentes qualidades a representação tinha por finalidade evocar.
Os atributos do ator e os do personagem são de ordens diferentes, e isto de modo inteiramente fundamental; e no entanto ambos os conjuntos têm seu significado em termos do espetáculo que deve prosseguir.
O indivíduo como ator tem a capacidade de aprender, sendo esta exercida na tarefa de treinamento para um papel. É dado a ter fantasias e sonhos, alguns que agradavelmente desenrolam uma representação triunfante, outros, cheios de ansiedade e terror, que nervosamente se referem a descréditos vitais numa pública região de fachada.
Manifesta às vezes um desejo gregário de companheiros de equipe e plateias, uma cuidadosa consideração pelos assuntos deles. E tem a capacidade de sentir-se profundamente envergonhado, o que o leva a reduzir ao mínimo as probabilidades que aceita, de se expor.
Estes atributos do indivíduo enquanto ator não são simplesmente um efeito retratado de representações particulares. São de natureza psicológica e no entanto parecem surgir da íntima interação com as contingências da representação no palco.
Por outro lado, o indivíduo como personagem que alguém representa são, de certa forma, equiparados, e este indivíduo-personagem é geralmente considerado como algo alojado no corpo do possuidor. A personalidade encenada pode ser considerada como uma espécie de imagem, geralmente digna de crédito, que o indivíduo no palco e como personagem efetivamente tenta induzir os outros a terem a seu respeito.
Embora esta imagem seja acolhida com relação ao indivíduo, de modo que lhe é atribuída uma personalidade, este "eu" não se origina do seu possuidor mas da cena inteira de sua ação, sendo gerado por aquele atributo dos acontecimentos locais que os torna capazes de serem interpretados pelos observadores.
Uma cena corretamente representada conduz a plateia a atribuir uma personalidade ao personagem representado, mas esta atribuição — este "eu" — é um "produto" de uma cena que se verificou, e não uma "causa" dela.
O "eu", portanto, como um personagem representado, não é uma coisa orgânica, que tem uma localização definida, cujo destino fundamental é nascer, crescer e morrer; é um efeito dramático, que surge difusamente de uma cena apresentada, e a questão característica, o interesse primordial, está em saber se será acreditado ou desacreditado.
Ao analisar o "eu", então, somos arrastados para longe de seu possuidor, da pessoa que lucrará ou perderá mais em tê-lo, pois ele e seu corpo simplesmente fornecem o cabide no qual algo de uma construção colaborativa será pendurado por algum tempo. E os meios para produzir e manter os "eus" não residem no cabide. Na verdade, frequentemente estes meios estão aferrolhados nos estabelecimentos sociais.
Haverá uma região de fundo com suas ferramentas para dar forma ao corpo e uma região de fachada com seus apoios fixos. Haverá uma equipe de pessoas cuja atividade no palco junto com os suportes disponíveis construirá a cena da qual emergirá o "eu" do personagem representado, e outra equipe, a plateia, cuja atividade interpretativa será necessária para esse surgimento. O "eu" é um produto de todos esses arranjos e em todas as suas partes traz as marcas dessa gênese.
O mecanismo completo da produção do "eu" é lento, sem dúvida, e às vezes se rompe expondo seus diversos componentes: o controle da região dos fundos; a conivência da equipe; o tato da plateia; e assim por diante. Mas, sendo bem lubrificado, as impressões fluirão dele com bastante rapidez para nos colocar no domínio de um dos nossos tipos de realidade.
A representação se realizará e o firme "eu" conferido a cada personagem representado parecerá emanar intrinsecamente de seu ator.
GOFFMAN, Erving [1956]. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
Controle da Expressão
O ator pode confiar em que a plateia aceite pequenos indícios como sinal de algo importante a respeito de sua atuação. Este fato conveniente tem uma implicação inconveniente.
Em virtude da mesma tendência a aceitar os sinais, a plateia pode não compreender o sentido que um indício devia transmitir, ou emprestar um significado embaraçoso a gestos ou acontecimentos acidentais, inadvertidos ou ocasionais, aos quais o ator não pretendia dar qualquer significação.
Quando se sabe que o público secretamente é cético quanto à realidade que lhe está sendo exibida, estamos preparados para apreciar sua tendência de precipitar-se sobre defeitos insignificantes como sinal de que o espetáculo inteiro é falso.
Mas, como estudiosos da vida social, estamos menos preparados para levar em conta que mesmo as plateias simpáticas podem ser momentaneamente perturbadas, chocadas e enfraquecidas na sua confiança pela descoberta de uma discrepância insignificante nas impressões que lhes são apresentadas.
Acontece que alguns destes mínimos acidentes e "gestos involuntários" são tão capazes de dar uma impressão que contradiz a que é fomentada pelo ator que a plateia não pode deixar de se sobressaltar com um adequado grau de envolvimento na interação, mesmo que o público compreenda que, em última análise, o acontecimento discrepante é realmente sem significado e deve ser completamente desprezado.
O ponto essencial não é que a efêmera definição da situação, causada por um gesto involuntário, seja censurável por si mesma, mas sim que seja diferente da definição oficialmente projetada. Esta diferença introduz um cunho agudamente embaraçoso entre a projeção oficial e a realidade, pois faz parte da primeira ser a única possível nas circunstâncias existentes.
Na nossa sociedade, alguns gestos involuntários ocorrem numa variedade tão ampla de representações, dando impressões geralmente tão incompatíveis com as que se pretende transmitir, que estes acontecimentos inoportunos adquiriram uma condição simbólica coletiva. Podemos mencionar aproximadamente três grupos destes acontecimentos.
Primeiro, um ator pode mostrar acidentalmente incapacidade, impropriedade ou desrespeito por perder momentaneamente o controle muscular. Pode tropeçar, claudicar, cair; pode arrotar, bocejar, cometer um lapso de linguagem, coçar-se ou ter flatulência; pode, acidentalmente, esbarrar em outro participante.
Segundo, o ator pode agir de tal maneira que dê a impressão de estar preocupado demais ou de menos com a interação. Pode gaguejar, esquecer o que tem a dizer, mostrar-se nervoso, culpado ou consciente de si mesmo; pode ter inadequadas explosões de riso, raiva ou outros estados emocionais que momentaneamente o incapacitam; pode revelar um envolvimento e interesse demasiado sérios ou pequenos demais.
Terceiro, o ator pode deixar que sua apresentação sofra por uma incorreta direção dramática. O cenário pode não ter sido montado adequadamente, ou ter sido preparado para outra representação, ou funcionar mal durante a representação; contingências imprevistas podem causar atraso na entrada e na saída do ator ou provocar murmúrios embaraçosos durante a interação.
Devemos, portanto, estar capacitados para compreender que a impressão de realidade criada por uma representação é uma coisa delicada, frágil, que pode ser quebrada por minúsculos contratempos.
A coerência expressiva exigida nas representações põe em destaque uma decisiva discrepância entre nosso eu demasiado humano e nosso eu socializado. Como seres humanos somos, presumivelmente, criaturas com impulsos variáveis, com estados de espírito e energias que mudam de um momento para outro.
Porém, quando nos revestimos de caráter de personagens em face de um público, não devemos estar sujeitos a altos e baixos. Espera-se que haja uma certa burocratização do espírito, a fim de que possamos inspirar a confiança de executar uma representação perfeitamente homogênea a todo tempo.
GOFFMAN, Erving [1956]. A representação do Eu na vida cotidiana. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
Estigma Social
A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias.
Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas. As rotinas de relação social em ambientes estabelecidos nos permitem um relacionamento com "outras pessoas" previstas sem atenção ou reflexão particular.
Então, quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem prever a sua categoria e os seus atributos, a sua "identidade social" — para usar um termo melhor do que "status social", já que nele se incluem atributos como "honestidade", da mesma forma que atributos estruturais, como "ocupação".
Baseando-nos nessas pré-concepções, nós as transformamos em expectativas normativas, em exigências apresentadas de modo rigoroso.
Caracteristicamente, ignoramos que fizemos tais exigências ou o que elas significam até que surge uma questão efetiva. Essas exigências são preenchidas? É nesse ponto, provavelmente, que percebemos que durante todo o tempo estivemos fazendo algumas afirmativas em relação àquilo que o indivíduo que está à nossa frente deveria ser.
Assim, as exigências que fazemos poderiam ser mais adequadamente denominadas de demandas feitas "efetivamente", e o caráter que imputamos ao indivíduo poderia ser encarado mais como uma imputação feita por um retrospecto em potencial — uma caracterização "efetiva", uma identidade social virtual. A categoria e os atributos que ele, na realidade, prova possuir, seriam a sua identidade social real.
Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser — incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável — num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca.
Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande — algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem — e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e a identidade social real.
Observe-se que há outros tipos de discrepância entre a identidade social real e a virtual como, por exemplo, a que nos leva a reclassificar um indivíduo antes situado numa categoria socialmente prevista, colocando-o numa categoria diferente, mas igualmente prevista e que nos faz alterar positivamente a nossa avaliação.
Observe-se, também, que nem todos os atributos indesejáveis estão em questão, mas somente os que são incongruentes com o estereótipo que criamos para um determinado tipo de indivíduo.
O termo estigma, portanto, faz referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem horroroso nem desonroso.
Por exemplo, alguns cargos nos Estados Unidos obrigam seus ocupantes que não tenham a educação universitária esperada a esconder isso; outros cargos, entretanto, podem levar os que os ocupam e que possuem uma educação superior a manter isso em segredo para não serem considerados fracassados ou estranhos.
O termo estigma e seus sinônimos ocultam uma dupla perspectiva: assume o estigmatizado que a sua característica distintiva já é conhecida ou é imediatamente evidente ou então que ela não é nem conhecida pelos presentes e nem imediatamente perceptível por eles.
No primeiro caso, está-se lidando com a condição do desacreditado, no segundo com a do desacreditável. Esta é uma diferença importante, mesmo que um indivíduo estigmatizado em particular tenha, provavelmente, experimentado ambas as situações.
Podem-se mencionar três tipos de estigma nitidamente diferentes. Em primeiro lugar, há as "abominações" do corpo — as várias "deformidades" físicas. Em segundo, as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, transtorno mental, prisão, vício, alcoolismo, homossexualidade, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical. Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família.
Em todos esses exemplos de estigma, entretanto, encontram-se as mesmas características sociológicas: um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que pode-se impor a atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus.
Ele possui um estigma, uma característica diferente da que havíamos previsto. Nós e os que não se afastam negativamente das expectativas particulares em questão são considerados “normais”.
Por definição, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida.
Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social.
Utilizamos termos específicos de estigma como "aleijado", "bastardo", "retardado", em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original.
GOFFMAN, Erving [1963]. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988.