Evolucionismo Cultural
Cultura ou civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo ser humano na condição de membro da sociedade.
A situação da cultura entre as várias sociedades, na medida em que possa ser investigada segundo princípios gerais, é um tema adequado para o estudo de leis do pensamento e da ação humana.
De um lado, a uniformidade que tão amplamente permeia a civilização pode ser atribuída, em grande medida, à ação uniforme de causas uniformes; de outro, seus vários graus podem ser vistos como estágios de desenvolvimento ou evolução, cada um resultando da história prévia e pronto para desempenhar seu próprio papel na modelagem da história do futuro.
Se o campo de pesquisa for reduzido da história como um todo para aquele ramo aqui chamado cultura — a história não de tribos ou nações, mas da condição de conhecimento, religião, arte, costumes e semelhanças entre elas —, a tarefa da investigação revela-se limitada a um âmbito muito mais razoável. Ainda enfrentamos o mesmo tipo de dificuldades que cercam o tema mais amplo, mas em número muito mais reduzido.
A evidência já não é tão erraticamente heterogênea, e pode ser mais facilmente classificada e comparada, enquanto a possibilidade de se livrar de material irrelevante e tratar cada questão dentro de seu apropriado conjunto de fatos faz com que, de modo geral, a argumentação rigorosa esteja mais disponível do que na história geral. Isso pode surgir de um breve exame preliminar do problema: como o fenômeno da cultura pode ser classificado e arranjado, estágio por estágio, numa ordem provável de evolução.
Pesquisados a partir de uma ampla perspectiva, o caráter e o hábito da humanidade exibem, de imediato, aquela similaridade e consistência de fenômenos expressas no provérbio italiano: “o mundo todo é uma aldeia”.
A partir da semelhança geral da natureza humana, de um lado, e da semelhança geral das circunstâncias de vida, de outro, essa similaridade e essa consistência podem, sem dúvida, ser traçadas, sendo estudadas com especial proveito na comparação de povos que se encontram em torno do mesmo grau de civilização.
Ao estudar tanto a recorrência de hábitos ou ideias especiais em diversas regiões quanto sua prevalência dentro de cada uma delas, apresentam-se diante de nós provas sempre reiteradas de causação regular produzindo os fenômenos da vida humana, e de leis de manutenção e difusão de acordo com as quais esses fenômenos se consolidam em permanentes condições-padrão, em estágios de cultura definidos.
Entre as evidências que nos ajudam a traçar o curso que a civilização mundial realmente seguiu está aquela grande classe de fatos aos quais achei conveniente denotar usando o termo “sobrevivências". Trata-se de processos, costumes, opiniões, e assim por diante, que, por força do hábito, continuaram a existir num novo estado de sociedade diferente daquele no qual tiveram sua origem, e então permanecem como provas e exemplos de uma condição mais antiga de cultura que evoluiu em uma mais recente.
A simples manutenção de hábitos antigos é apenas uma parte da transição do tempo antigo para os tempos novos e mutantes. Podemos ver aquilo que era um assunto sério na sociedade antiga sendo reduzido a entretenimento de gerações futuras, e suas graves crenças perdurando como histórias folclóricas para crianças, enquanto hábitos superados que faziam parte da vida do mundo antigo podem ser modificados e adquirir formas ainda poderosas no mundo novo, para o bem e para o mal.
Às vezes, velhos pensamentos e práticas irão irromper novamente, para surpresa de um mundo que os pensava há muito mortos ou morrendo; aqui, sobrevivência transforma-se em renascimento, como tem acontecido ultimamente, de maneira tão notável, na história do espiritualismo moderno, um tema cheio de ensinamentos do ponto de vista do etnógrafo.
O estudo dos princípios de sobrevivência tem, na verdade, uma importância prática nada pequena, pois a maior parte do que chamamos superstição está incluída nas sobrevivências e, dessa forma, fica exposta ao ataque de seu mais mortal inimigo: uma explicação razoável.
Além disso, insignificantes como são, em si mesmos, os abundantes casos de sobrevivência, seu estudo é tão útil para traçar o curso do desenvolvimento histórico — única forma possível de entender seu significado — que se torna um ponto vital da pesquisa etnográfica obter a mais clara compreensão possível de sua natureza.
Progresso, degradação, sobrevivência, renascimento e modificação são, todos eles, aspectos da conexão que liga a complexa rede da civilização. Basta uma olhada nos detalhes triviais de nossa própria vida diária para nos pormos a pensar o quanto somos nós realmente seus originadores e o quanto somos apenas os transmissores e modificadores dos resultados de eras muito antigas.
TYLOR, Edward [1871]. A ciência da cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
Método Comparativo
Um primeiro passo no estudo da civilização é dissecá-la em detalhes e, em seguida, classificá-los em seus grupos apropriados.
Assim, ao examinar as armas, elas devem ser classificadas como lança, maça, funda, arco e flecha, e assim por diante; entre as artes têxteis, devem constar tapeçaria, confecção de redes e diversos graus de complexidade no fazer e tecer fios; os mitos estão divididos em tópicos como mitos do nascer do sol e do poente, do eclipse, do terremoto, mitos locais que usam algum conto fantástico para explicar os nomes de lugares, mitos eponímicos que explicam a ascendência de uma tribo transformando seu nome no de um ancestral imaginário; no grupo dos ritos e cerimônias, ocorrem práticas como os vários tipos de sacrifícios para os fantasmas dos mortos e para outros seres espirituais, o voltar-se para o leste para orar, a purificação de impureza cerimonial ou moral usando água ou fogo.
Tais são uns poucos exemplos variados de uma lista de centenas, e o trabalho do etnógrafo é classificar esses detalhes com vistas a estabelecer sua distribuição na geografia e na história e as relações existentes entre eles.
Há um aspecto que vale a pena considerar: os relatos de fenômenos de cultura similares e recorrentes em diferentes partes do mundo fornecem, na verdade, uma prova incidental de sua própria autenticidade.
Há alguns anos, um grande historiador me fez uma pergunta que revela esse ponto: “Como pode um relato sobre costumes, mitos, crenças etc. de uma sociedade indígena ser tratado como evidência nos casos em que isso depende do testemunho de algum viajante ou missionário que pode ser um observador superficial, mais ou menos ignorante da língua nativa, ou um comerciante descuidado de fala irrefletida, um homem preconceituoso ou mesmo intencionalmente enganoso?”. Essa é uma questão que, por certo, todo etnógrafo deve ter sempre em mente.
Sem dúvida, ele tem a obrigação de usar seu melhor julgamento quanto à fidedignidade de todos os autores que cita e, se possível, obter diversos relatos para confirmar cada ponto em cada localidade. Mas o teste de recorrência vem antes e acima dessas medidas de precaução.
Se dois visitantes independentes, em países diferentes — digamos, um muçulmano medieval na Tartária e um inglês moderno em Daomé, ou um missionário jesuíta no Brasil e um metodista nas ilhas Fiji —, estão de acordo ao descrever alguma arte, rito ou mito análogo entre os povos que visitaram, torna-se difícil ou impossível atribuir tal correspondência ao acaso ou a fraude intencional.
Quanto mais singular o relato, menos provável que diversas pessoas em diversos lugares fossem fazê-lo igualmente errado. Sendo assim, parece razoável julgar que, de modo geral, eles são verdadeiros, e que sua proximidade e regular coincidência devem-se ao surgimento de fatos semelhantes em vários distritos da cultura. Os fatos mais importantes da etnografia são provados dessa maneira.
A qualidade da humanidade que mais tende a tornar possível o estudo sistemático da civilização é aquele notável consenso ou acordo tácito que, até hoje, induz populações inteiras a se unirem no uso da mesma língua, seguirem a mesma religião e as mesmas leis, estabelecerem-se num mesmo nível geral de arte e conhecimento.
É esse estado de coisas que torna possível, até agora, ignorar fatos excepcionais e descrever as nações em termos de uma média geral. É esse estado de coisas que torna possível, até agora, representar imensas massas de detalhes recorrendo a uns poucos fatos típicos, e que permite, uma vez estejam esses consolidados, que novos casos relatados por novos observadores simplesmente se encaixem em seus lugares para provar a solidez da classificação.
Encontra-se tamanha regularidade na composição das sociedades que é possível pôr de lado diferenças individuais e, assim, fazer generalizações sobre as artes e opiniões de nações inteiras, do mesmo modo que, olhando um exército do alto de uma colina, esquecemos o soldado individual — a quem, de fato, mal distinguimos na massa — enquanto vemos cada regimento como um corpo organizado, espalhando-se ou se concentrando, avançando ou batendo em retirada.
Em alguns ramos do estudo das leis sociais, é possível agora recorrer à ajuda de estatísticas e destacar ações específicas de grandes comunidades mistas por meio de calendários de coletores de impostos ou de tabelas de companhias de seguro, por exemplo.
Embora generalizando sobre a cultura de uma tribo ou nação, e deixando de lado as peculiaridades dos indivíduos que a compõem como sendo sem importância para o resultado principal, devemos ter o cuidado de não esquecer o que compõe esse resultado principal.
Há pessoas tão concentradas no aspecto individual da vida de outras que não conseguem apreender a noção de ação de uma comunidade como um todo; tal observador, incapaz de uma visão ampla da sociedade, está adequadamente descrito no dito “as árvores o impedem de ver a floresta”. Mas, por outro lado, o estudioso pode estar tão concentrado em suas leis gerais da sociedade que chegue ao ponto de negligenciar os atores individuais dos quais a sociedade é feita, e dele se pode dizer que a floresta não o deixa ver as árvores.
Sabemos como artes, ideias e costumes são moldados entre nós pelas ações combinadas de muitos indivíduos, e os motivos e efeitos dessas ações frequentemente chegam a nós de maneiras bastante distintas.
A história de uma invenção, de uma opinião, de uma cerimônia, é uma história de sugestão e modificação, encorajamento e oposição, ganho pessoal e preconceito grupal, e cada um dos indivíduos envolvidos age de acordo com seus próprios motivos, conforme determinado por seu caráter e suas circunstâncias.
Assim, às vezes observamos indivíduos agindo em função de seus próprios fins, pouco preocupados com os efeitos sobre a sociedade em geral, e às vezes temos que estudar movimentos da vida nacional como um todo nos quais os indivíduos participantes estão totalmente fora de nosso campo de observação.
Mas, vendo que a ação social coletiva é o mero resultante das ações de muitos indivíduos, é claro que esses dois métodos de pesquisa, se corretamente seguidos, têm de ser absolutamente consistentes.
TYLOR, Edward [1871]. A ciência da cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.