Orientalismo
Minhas principais pressuposições operacionais eram — e continuam a ser — que os campos de estudo, tanto quanto as obras até do artista mais excêntrico, são restritos e influenciados pela sociedade, por tradições culturais, pela circunstância mundana e por influências estabilizadoras como as escolas, as bibliotecas e os governos.
Além disso, que tanto os escritos eruditos como os imaginativos nunca são livres, mas limitados nas suas imagens, pressuposições e intenções. E, finalmente, que os progressos feitos por uma “ciência” como o Orientalismo na sua forma acadêmica são menos objetivamente verdadeiros do que muitas vezes gostamos de pensar.
Um campo de estudos como o Orientalismo tem uma identidade cumulativa e corporativa, uma identidade que é particularmente forte dadas as suas associações com a erudição tradicional — os clássicos, a Bíblia, a filologia —, as instituições públicas — governos, companhias comerciais, sociedades geográficas, universidades — e os escritos genericamente determinados — livros de viagem, livros de exploração, fantasia, descrição exótica.
O resultado para o Orientalismo tem sido uma espécie de consenso: certas coisas, certos tipos de afirmação, certos tipos de obra parecem corretos ao orientalista. Ele constrói a sua obra e pesquisa com base nessas coisas, e elas, por sua vez, exercem forte pressão sobre os novos escritores e eruditos.
Assim, o Orientalismo pode ser considerado um modo de escrita, visão e estudo regularizados ou "orientalizados", dominados por imperativos, perspectivas e vieses ideológicos ostensivamente adequados para o Oriente. O Oriente é ensinado, pesquisado, administrado e comentado segundo maneiras determinadas.
O Oriente que aparece no Orientalismo, portanto, é um sistema de representações estruturado por todo um conjunto de forças que introduziram o Oriente na erudição ocidental, na consciência ocidental e, mais tarde, no império ocidental. Se essa definição do Orientalismo parece mais política, é simplesmente porque acho que ele foi o produto de certas forças e atividades políticas.
O Orientalismo é uma escola de interpretação cujo material é por acaso o Oriente, suas civilizações, povos e localidades. Suas descobertas objetivas — o trabalho de inúmeros eruditos dedicados que editaram e traduziram textos, codificaram gramáticas, escreveram dicionários, reconstruíram épocas mortas, produziram erudição positivistamente verificável — são e sempre foram condicionadas pelo fato de que suas verdades, como quaisquer verdades transmitidas pela linguagem, estão incorporadas na linguagem.
E o que é a verdade da linguagem, perguntou o filósofo alemão Friedrich Nietzsche certa vez, senão “um exército móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos — em suma, uma soma de relações humanas que foram realçadas, transpostas e embelezadas poética e retoricamente, e que depois de um longo uso parecem firmes, canônicas e obrigatórias a um povo: as verdades são ilusões, sobre as quais esquecemos que é isso o que elas são”.
Talvez uma visão como a de Nietzsche nos pareça demasiado niilista, mas ao menos chamará a atenção para o fato de que, desde que passou a existir na consciência do Ocidente, o Oriente foi uma palavra a que mais tarde se acrescentou um amplo campo de significados, associações e conotações, e de que esses não se referiam necessariamente ao Oriente real, mas ao campo que circundava a palavra.
O Orientalismo não é somente uma doutrina positiva sobre o Oriente que existe num determinado momento no Ocidente; é também uma tradição acadêmica influente — quando nos referimos a um especialista acadêmico como um orientalista —, bem como uma área de interesse definida por viajantes, empresas comerciais, governos, expedições militares, leitores de romances e de relatos de aventuras exóticas, historiadores naturais e peregrinos, para quem o Oriente é um tipo específico de conhecimento sobre lugares, povos e civilizações específicos.
Tornou-se frequente, em relação ao oriente, o uso de expressões peculiares, e essas expressões se assentaram com firmeza no discurso europeu. Por baixo das expressões, havia uma camada de doutrina sobre o Oriente; essa doutrina era modelada com as experiências de muitos europeus, todas convergindo para aspectos essenciais, como o caráter oriental, o despotismo oriental, a sensualidade oriental e coisas afins.
Para qualquer europeu no decorrer do século XIX — e acho que se pode afirmar isso quase sem ressalvas — o Orientalismo era esse sistema de verdades, verdades no sentido que Nietzsche dava à palavra.
É portanto correto dizer que todo europeu, no que podia falar sobre o Oriente, era consequentemente um racista, um imperialista e um etnocêntrico quase por inteiro. Parte da mordacidade imediata será removida desses rótulos se nos lembrarmos ainda que as sociedades humanas, ao menos as culturas "mais avançadas", quase nunca ofereceram ao indivíduo algo que não fosse imperialismo, racismo e etnocentrismo para lidar com “outras” culturas.
O Orientalismo, portanto, ajudou e foi ajudado por pressões culturais gerais que tendiam a tornar mais rígido o senso de diferença entre as regiões europeia e asiática do mundo. A minha afirmação é que o Orientalismo é, no fundamental, uma doutrina política, imposta ao Oriente porque esse era mais fraco que o Ocidente, que elidia a diferença do Oriente com a sua fraqueza.
A própria presença de um “campo” como o Orientalismo, sem equivalente correspondente no próprio Oriente, sugere a força relativa entre Oriente e Ocidente. Existe um imenso número de páginas sobre o Oriente, e elas revelam certamente um grau e uma quantidade de interação com o Oriente que são formidáveis; mas o indicador crucial da força ocidental é que não há possibilidade de comparar o movimento dos ocidentais para o leste, desde o fim do século XVIII, com o movimento dos orientais para o oeste.
Esse desequilíbrio entre o Leste e o Oeste é obviamente uma função de padrões históricos mutáveis. Durante seu auge político e militar do século VIII ao XVI, o islã dominou tanto o Leste como o Oeste. Depois o centro do poder se deslocou na direção do Oeste, e agora no final do século XX parece estar se dirigindo de volta para o Leste.
SAID, Edward [1978]. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.