Observação Participante
Às vezes ouço dizer que qualquer pessoa pode observar e escrever um livro sobre um povo desconhecido. Talvez qualquer pessoa possa, mas não vai estar necessariamente acrescentando algo à antropologia.
Na ciência, como na vida, só se acha o que se procura. Não se pode ter as respostas quando não se sabe quais são as perguntas. Por conseguinte, a primeira exigência para que se possa realizar uma pesquisa de campo é um treinamento rigoroso em teoria antropológica, que dê as condições de saber o quê e como observar, e o que é teoricamente significativo.
É essencial percebermos que os fatos em si não têm significado. Para que o possuam, devem ter certo grau de generalidade. É inútil partir para o campo sem orientação. É preciso saber exatamente o que se quer saber, e isso só pode ser conseguido graças a um treinamento sistemático em antropologia social acadêmica.
Todo saber é relevante para nossas pesquisas, podendo, ainda que não seja classificado e ensinado como antropologia, influenciar a direção de nossos interesses e, por intermédio destes, nossas observações e a maneira de apresentá-las.
Além disso, pode-se dizer que, desde que nosso objeto de estudo são os seres humanos, tal estudo envolve toda a nossa personalidade — cabeça e coração; e que, assim, tudo aquilo que moldou essa personalidade está envolvido, não só a formação acadêmica: sexo, idade, classe social, nacionalidade, família, escola, igreja, amizades e assim por diante.
Costumava-se dizer, e talvez ainda se diga, que o antropólogo vai para o campo com ideias preconcebidas sobre a natureza das sociedades indígenas, e que suas observações são guiadas por suas tendências teóricas — como se isso fosse um vício, e não uma virtude.
Todo mundo vai a uma comunidade indígena com ideias preconcebidas. Mas como o antropólogo polonês Bronislaw Malinowski costumava lembrar, as do leigo são desinformadas, em geral preconceituosas, ao passo que as do antropólogo são científicas, pelo menos no sentido de que se baseiam num corpo muito considerável de conhecimento acumulado e aprimorado. Se o antropólogo não fosse a campo com ideias preconcebidas, não saberia o que observar, nem como fazê-lo.
Também é evidente que as observações do antropólogo são infletidas por seus interesses teóricos; isso significa apenas que ele está de posse de várias hipóteses permitidas pelo conhecimento disponível e que, se seus dados o permitirem, vai testar essas hipóteses. Como poderia ser diferente?
Não se pode estudar coisa alguma sem uma teoria a respeito de sua natureza. Por outro lado, o antropólogo deve seguir o que encontra na sociedade que escolheu estudar: a organização social, os valores e sentimentos do povo, e assim por diante.
Evidentemente a coisa mais essencial em uma pesquisa antropológica é um profundo conhecimento da língua do povo que se está estudando. Não há outro caminho para que o pensamento do grupo — que sempre foi o que me interessou, e a isso devotei toda a minha carreira — seja compreendido e exposto pelo antropólogo.
Todo processo social, toda relação social, toda ideia têm sua representação em palavras e objetos, e se alguém consegue dominar as palavras e as coisas, nada termina por escapar.
É desejável que o antropólogo estude mais de uma sociedade, embora isso nem sempre seja possível. Se realiza apenas um estudo, é inevitável que perceba as instituições da sociedade estudada em contraste com as suas próprias, que oponha as ideias e valores desse povo com os de sua própria cultura, e isso apesar de todo esforço corretivo implícito em seu conhecimento da literatura antropológica.
Mas, quando for estudar uma segunda sociedade estrangeira, vai abordá-la à luz de sua experiência com a primeira — como se através de outras lentes, outra perspectiva —, e isso tende a fazer com que seu estudo se torne mais objetivo, ou pelo menos lhe sugere linhas de pesquisa que poderiam não se ter aberto.
Na medida do possível e do conveniente, o pesquisador deve viver a vida do povo que está estudando. Percebi que, se eu queria saber como e por que os azande faziam certas coisas, o melhor era fazê-las eu mesmo: possuí uma cabana e um estábulo, como eles; cacei com eles, com lança e arco e flecha; aprendi o ofício de oleiro; consultei os oráculos; e assim por diante. Mas é preciso reconhecer que há um certo fingimento em tais esforços de participação, e os povos que estudamos nem sempre os acolhem bem.
Na verdade, entra-se numa outra cultura, mas ao mesmo tempo guarda-se uma distância dela. Não é possível ao antropólogo tornar-se verdadeiramente um zande ou um nuer; a atitude mais digna a seu respeito talvez seja a de manter-se, no essencial, apartado deles. Pois, de qualquer modo, sempre seremos nós mesmos e nada mais — membros de nossa própria sociedade, visitantes numa terra estranha.
Talvez seja melhor dizer que o antropólogo vive simultaneamente em dois mundos mentais diferentes, construídos segundo categorias e valores muitas vezes de difícil conciliação. Ele se torna, ao menos temporariamente, uma espécie de indivíduo duplamente marginal, alienado de dois mundos.
EVANS-PRITCHARD, Edward [1937]. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.