Imaginação Sociológica
A distinção entre "as perturbações pessoais originadas no meio mais próximo" e "as questões públicas da estrutura social" é um instrumento essencial da imaginação sociológica e uma característica de todo trabalho clássico na ciência social.
As perturbações pessoais ocorrem dentro do caráter do indivíduo e dentro do âmbito de suas relações imediatas com os outros; estão relacionadas com o seu eu e com as áreas limitadas da vida social, de que ele tem consciência direta e pessoal.
Assim, a formulação e a resolução das perturbações se enquadram, adequadamente, no âmbito do indivíduo como entidade biográfica e dentro do alcance de seu meio imediato — o ambiente social que está aberto diretamente à sua experiência pessoal e, em certas proporções, à sua atividade consciente.
Uma perturbação pessoal é um assunto privado: a pessoa sente que os valores por ela estimados estão ameaçados.
As questões públicas, por sua vez, relacionam-se com assuntos que transcendem esses ambientes locais do indivíduo e o alcance de sua vida íntima. Relacionam-se com a organização de muitos desses ambientes sob a forma de instituições de uma sociedade histórica como um todo, com as maneiras pelas quais os vários ambientes de pequena escala se confundem e se interpenetram, para formar a estrutura mais ampla da vida social e histórica.
Uma questão pública é um assunto coletivo: é um valor estimado pelo público que está ameaçado.
Consideremos o desemprego. Quando, numa cidade de dez mil habitantes, somente uma pessoa está desempregada, isso é seu problema pessoal, e para sua solução examinamos adequadamente o caráter individual, suas habilidades e suas oportunidades imediatas. Mas quando numa nação de 100 milhões de empregados, 15 milhões de pessoas não encontram trabalho, isso é uma questão pública, e não podemos esperar sua solução dentro da escala de oportunidades abertas às pessoas individualmente.
A estrutura mesma das oportunidades entrou em colapso. Tanto a formulação exata do problema como a gama de soluções possíveis exigem que consideremos as instituições econômicas e políticas da sociedade e não apenas a situação pessoal e o caráter de um punhado de indivíduos.
Ter consciência da ideia da estrutura social e utilizá-la com sensibilidade é possuir a imaginação sociológica, é ser capaz de identificar as relações sociais entre as perturbações pessoais e as questões públicas.
MILLS, Charles Wright [1959]. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
Elite do Poder
O capitalismo americano é atualmente, em proporções consideráveis, um capitalismo militar, e a relação mais importante entre as grandes empresas e o Estado repousa na coincidência de interesses entre as necessidades militares e as das empresas.
Essa coincidência de interesses entre os altos militares e os dirigentes econômicos fortalece a ambos e subordina ainda mais o papel dos homens simplesmente políticos.
A forma e o sentido da elite do poder só podem ser compreendidos hoje quando essas três séries de tendências estruturais são vistas em seu ponto de coincidência: o capitalismo militar das empresas privadas existe num sistema democrático formal e enfraquecido, com uma ordem militar já perfeitamente política na perspectiva e comportamento.
Assim, no alto dessa estrutura, a elite do poder tem sido modelada pela coincidência de interesses entre os que controlam os principais meios de produção e os que controlam os novos meios de violência, muito ampliados; pelo declínio do político profissional e elevação do comando político explícito dos chefes econômicos e militares; pela ausência de um serviço público autêntico, baseado na capacidade e integridade, independente dos interesses criados.
O cerne da elite do poder consiste, primeiro, dos que trocam entre si os papéis de comando no alto da ordem institucional dominante com os que ocupam tais postos em outra ordem: o almirante que é também banqueiro e o advogado que chefia uma importante comissão federal; o executivo de empresa cuja companhia foi uma das duas ou três principais produtoras de material bélico é hoje o Secretário da Defesa; o general da guerra que vestiu roupas civis para sentar-se no diretório político e tornar-se em seguida membro da junta de diretores de uma importante empresa.
Embora o executivo que se torna general, o general que se torna estadista, o estadista que se torna banqueiro, vejam, em seus respectivos ambientes, homens que nada têm de comuns, num ambiente também incomum, suas perspectivas frequentemente permanecem ligadas aos seus locais de origem.
Durante sua carreira, trocam de papéis dentro dos três grandes, e com isso transcendem prontamente a particularidade de interesses de qualquer um desses meios institucionais. Pelas suas carreiras e atividades, entrelaçam, unindo-os, os três tipos de ambientes onde atuam. São, portanto, o cerne da elite do poder.
Esses homens não estão necessariamente familiarizados com todas as principais arenas do poder. Há os que se movem em e talvez entre dois círculos — digamos, o industrial e o militar, outros movimentam-se nos círculos militar e político, um terceiro tanto age entre políticos como entre os que influenciam a opinião.
O cerne da elite do poder também inclui altos advogados e financistas dos grandes escritórios e firmas de investimentos, que são quase intermediários profissionais entre as questões econômicas, políticas e militares, e dessa forma agem para unificar a elite do poder.
O advogado de empresa e o banqueiro de investimento executam a função de intermediários com eficiência e com poder. Pela natureza desse trabalho, transcendem o meio mais limitado de uma indústria e, portanto, estão em posição de falar e agir pelo mundo econômico, ou pelo menos em nome de ponderáveis setores deste.
O advogado de empresa é um elo-chave entre as áreas econômica, militar e política: o banqueiro de investimento é um organizador e unificador do mundo das empresas, bem versado no emprego de imensas somas de dinheiro que os estabelecimentos militares americanos hoje gastam. Onde há um advogado que trata dos aspectos legais dos investimentos feitos pelos banqueiros, temos um membro importante da elite do poder.
Quando a elite do poder verifica que para realizar as coisas deve ter influências em setores abaixo de seu nível — como ocorre quando se torna necessário aprovar leis no Congresso — ela própria exerce certa pressão.
Mas entre a elite do poder, o nome desse trabalho de politicagem e pressão é “trabalho de ligação”. Há militares que funcionam como “ligação” com o Congresso, com certos setores da indústria, como praticamente todos os elementos importantes não diretamente ligados à elite do poder.
Não as associações comerciais, mas os altos grupos de advogados e banqueiros de investimentos são os líderes políticos ativos dos ricos associados e os membros da elite do poder.
As pressões e solicitações convencionais, realizadas pelas associações de classe, ainda existem, embora se ocupem habitualmente dos níveis médios do poder — seu alvo é o Congresso e, naturalmente, seus membros.
A função importante da Associação Nacional de Industriais, por exemplo, é dirigida menos no sentido de influenciar a política do que revelar aos homens de pequenos negócios que seus interesses são idênticos aos dos grandes negócios.
Mas há também uma pressão de alto nível. Em todo o país, os líderes da economia são atraídos para os círculos dos altos militares e políticos através de amizades pessoais, ligações profissionais e econômicas e seus vários subcomitês, clubes de prestígio, filiação política clara e relações de clientes.
Há, na realidade, grupos de executivos de empresas mais importantes como líderes informais da opinião nos altos escalões do poder econômico, militar e político do que como participantes de fato das organizações militares e políticas.
Dentro dos círculos militares e políticos e nos setores laterais da área econômica, esses círculos e grupos de executivos participam de quase todas as principais decisões, a despeito do assunto. E o importante em toda essa pressão de alto nível é ser ela feita dentro dos limites da elite do poder.
Enfim, a ideia da elite do poder se baseia e nos permite perceber:
1) o sentido das tendências institucionais decisivas que caracterizam a estrutura de nossa época, em particular, a ascendência militar em uma economia incorporada e, mais ainda, as várias coincidências e interesses objetivos entre as instituições econômicas, militares e políticas;
2) as semelhanças sociais e afinidades psicológicas dos homens que ocupam os postos de comando dessas estruturas, em particular o intercâmbio das altas posições em cada uma delas, e a maior troca entre essas ordens, no que se relaciona com a carreira dos homens de poder;
3) as ramificações, em quase a totalidade, do tipo de decisões tomadas no alto, e a subida ao poder de um grupo de homens que, pelo treinamento e vocação, são organizadores profissionais de força considerável e que não sofrem as limitações da formação democrática dos partidos.
Negativamente, a formação da elite do poder repousa no rebaixamento dos políticos partidários aos níveis médios do poder; no impasse semiorganizado dos interesses das localidades soberanas no qual a função legislativa caiu; na ausência praticamente total de um serviço público que constitua um repositório politicamente neutro, mas relevante, de capacidade intelectual e executiva; e no aumento do sigilo oficial atrás do qual se tomam as grandes decisões, sem qualquer debate popular pelo Congresso.
MILLS, Charles Wright [1956]. A elite do poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.