Mundo da Vida
Filósofos tão diferentes quanto William James, Henri Bergson, John Dewey, Edmund Husserl e Alfred North Whitehead concordam que o conhecimento do senso comum da vida cotidiana é o fundo não questionado, mas sempre questionável, a partir do qual o estudo passa a existir, e somente a partir do qual pode ser desenvolvido.
É desse "mundo da vida", como o chama Husserl, que todos os conceitos científicos e até lógicos se originam. Ele é a matriz social da qual, de acordo com Dewey, surgem as situações não esclarecidas que têm de ser transformadas pelo processo do estudo na possibilidade fundamentada de asserção.
E Whitehead afirmou que a meta da ciência é produzir uma teoria compatível com a experiência, explicando os objetos de pensamento construídos pelo senso comum, através de construções mentais, ou os objetos de pensamento da ciência.
Pois todos esses pensadores concordam que qualquer conhecimento do mundo, no pensamento do senso comum bem como na ciência, envolve construções mentais, sínteses, generalizações, formalizações e idealizações específicas do respectivo nível de organização do pensamento.
O conceito de natureza, por exemplo, com o qual as Ciências Naturais têm de lidar é, como mostrou Husserl, uma abstração idealizada do "mundo da vida". Uma abstração que, em princípio e, é claro, legitimamente, exclui as pessoas com a sua vida pessoal e todos os objetos da cultura que, como tais, se originam da atividade humana prática.
Porém, é exatamente essa camada do "mundo da vida" da qual as Ciências Naturais têm de se abstrair que é a realidade social que as Ciências Sociais têm de investigar.
Uma teoria que visa explicar a realidade social tem de desenvolver dispositivos particulares, estranhos às Ciências Naturais, a fim de acompanhar a experiência do senso comum do mundo social. Isso foi, de fato, o que fizeram todas as ciências teóricas das coisas humanas — Economia, Sociologia, Direito, Linguística, Antropologia Cultural, etc.
O campo de observação do cientista social, no entanto, ou mais precisamente a realidade social, tem um significado específico e uma estrutura de relevâncias para os seres humanos que vivem, agem e mesmo dentro dele.
Através de uma série de construções do senso comum, eles previamente selecionaram e interpretaram esse mundo que vivenciam como a realidade de suas vidas diárias. São esses seus objetos de pensamento que determinam seu comportamento, motivando-o.
Os objetos de pensamento construídos pelo cientista social para captar essa realidade social têm de ser fundamentados nos objetos de pensamento construídos pelo pensamento do senso comum dos seres humanos que vivem sua vida diária dentro do seu mundo social.
Os construtos das Ciências Sociais são, por assim dizer, construtos de segundo grau, ou seja, construtos dos construtos feitos pelos atores no cenário social, cujo comportamento o cientista social tem de observar e explicar de acordo com as regras de procedimento da sua ciência.
Assim, a exploração dos princípios gerais segundo os quais o ser humano organiza suas experiências na vida diária, e especialmente as do mundo social, é a primeira tarefa da metodologia das Ciências Sociais.
SCHÜTZ, Alfred [1970]. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
Conhecimento Prático
“O mundo da vida cotidiana” significa o mundo intersubjetivo que existia muito antes do nosso nascimento, vivenciado e interpretado por outros, nossos predecessores, como um mundo organizado. Ele agora se dá à nossa experiência e interpretação.
Toda interpretação desse mundo se baseia num estoque de experiências anteriores dele, as nossas próprias experiências e aquelas que nos são transmitidas por nossos pais e professores, as quais, na forma de “conhecimento à mão”, funcionam como um código de referência.
Todo momento da vida de um ser humano é a situação biográfica determinada em que ele se encontra, isto é, o ambiente físico e sociocultural conforme definido por ele, dentro do qual ele tem a sua posição, não apenas posição em termos de espaço físico e tempo exterior, ou de seu status e papel dentro do sistema social, mas também sua posição moral e ideológica.
Dizer que essa definição da situação é determinada em termos biográficos significa dizer que ela tem a sua história. É a sedimentação de todas as experiências anteriores dessa pessoa, organizadas de acordo com as posses “habituais” de seu estoque de conhecimento à mão, que como tais são posses unicamente dela, dadas a ela e a ela somente.
O ser humano na vida diária tem a qualquer momento um estoque de conhecimento à mão que lhe serve como um código de interpretações de suas experiências passadas e presente, e também determina sua antecipação das coisas que virão.
Esse estoque de conhecimento tem sua história particular. Foi constituído de e por atividades anteriores de experiência de nossa consciência, cujo resultado tornou-se agora uma posse nossa, habitual.
Por outro lado, esse estoque de conhecimento à mão não é nada homogêneo, mas apresenta uma estrutura especial. Há um núcleo relativamente pequeno de conhecimento que é claro, distinto e consistente. Esse núcleo é cercado de zonas de gradação variada de vagueza, obscuridade e ambiguidade. A essas se seguem zonas de preconceitos, crendices, puras suposições, mera adivinhação, zonas de coisas nas quais basta “acreditar”. E, finalmente, existem regiões que ignoramos completamente.
É o sistema de nosso interesse prático ou teórico nesse momento específico que determina não só o que é problemático e o que pode permanecer inquestionável, mas também o que deve ser conhecido, e com que grau de clareza e precisão deve ser conhecido, para a resolução do problema em causa.
Noutras palavras, é o problema em particular do que nos ocupamos que subdivide nosso estoque de conhecimento à mão em zonas diferentes de relevância para a sua solução e estabelece, assim, os limites das várias zonas do nosso conhecimento, ou seja, zonas de nitidez e de vagueza, de clareza e obscuridade, de precisão e ambiguidade.
Deve-se salientar que o estoque de conhecimento existe num fluxo contínuo e muda de qualquer agora para o seguinte, não só em termos de extensão como também de estrutura. Está claro que qualquer experiência posterior o enriquece e alarga.
Através da referência ao estoque de conhecimento à mão, num determinado agora, a experiência atual em curso aparece como “familiar”, se está relacionada por meio de uma "síntese de conhecimento" a alguma experiência anterior.
A experiência em curso pode, por exemplo, ser identificada com uma experiência anterior “igual, que se repete”, ou com uma experiência anterior “igual, mas modificada”, ou, ainda, como uma experiência de um tipo semelhante ao de alguma já vivenciada, e assim por diante. Ou, então, a experiência em curso aparece como “estranha”, no caso de nem ao menos remeter a um tipo à mão de experiência anterior.
Em ambos os casos, é o estoque de conhecimento à mão que serve como código de interpretação da experiência atual em curso. Essa referência a atos já vivenciados pressupõe memória, e todas as suas funções, tais como lembrança, retenção, reconhecimento.
O conhecimento do ser humano que age e pensa dentro do mundo de sua vida cotidiana não é homogêneo; é incoerente, apenas parcialmente claro e não está livre de contradições.
É incoerente porque os interesses do indivíduo, que determinam a relevância dos objetos que ele seleciona porque acha que deve conhecer melhor, não são eles próprios integrados num sistema coerente. Eles são apenas em parte organizados em planos de qualquer tipo, como, por exemplo, planos de vida, planos de trabalho e lazer, planos relativos a qualquer papel social assumido.
Mas a hierarquia desses planos muda com a situação e com o crescimento da personalidade; os interesses mudam continuamente e provocam uma transformação ininterrupta na forma e no conteúdo das linhas de relevância. Não só muda a seleção dos objetos a serem conhecidos, mas também o grau de conhecimento sobre ele se almeja.
Na vida diária é só parcialmente e, se ousamos dizer, excepcionalmente — que o ser humano se interessa pela clareza de seu conhecimento, isto é, por uma visão mais profunda das relações entre os elementos desse mundo e os princípios gerais que as regulam.
Ele se satisfaz, por exemplo, com o fato de haver um bom serviço de telefone a seu dispor e, normalmente, não pergunta detalhes do funcionamento do aparelho ou que leis da Física possibilitam seu funcionamento.
Finalmente, seu conhecimento não é consistente. Ao mesmo tempo, ele pode considerar igualmente válidas afirmações que, na realidade, são incompatíveis uma com a outra. Como pai, cidadão, empregado e membro de uma igreja, um homem pode ter as mais diferentes e incongruentes opiniões sobre temas morais, políticos ou econômicos.
Essa inconsistência não se origina necessariamente de uma falha lógica. Simplesmente, o pensamento das pessoas se espalha por assuntos situados em níveis diferentes e de relevância diferente, e elas não têm consciência das modificações que teriam de fazer para passar de um nível a outro.
SCHÜTZ, Alfred [1970]. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.