Função Social
O conceito de função aplicado a sociedades humanas baseia-se na analogia entre vida social e vida orgânica.
Toda tentativa de aplicar este conceito em ciências sociais implica a suposição de que há condições necessárias de existência para as sociedades humanas, do mesmo modo que as há para organismos animais, e que elas podem ser descobertas pela pesquisa científica adequada.
A vida do organismo animal é concebida como o funcionamento de sua estrutura. É mediante a continuidade do funcionamento que a continuidade da estrutura se mantém.
Se examinarmos uma sociedade podemos reconhecer a existência de uma estrutura social. Os seres humanos individuais, unidades essenciais neste caso, estão relacionados por uma série definida de relações sociais num todo integrado.
A continuidade da estrutura é mantida pelo processo da vida social, que consiste de atividades e interações dos seres humanos como indivíduos, e dos grupos organizados nos quais estão unidos. A vida social da comunidade é definida aqui como o funcionamento da estrutura social.
A função de qualquer atividade periódica, tal como a punição de um crime, ou uma cerimônia fúnebre, é a parte que ela desempenha na vida social como um todo e, portanto, a contribuição que faz para a manutenção da continuidade estrutural.
O conceito de função tal como é aqui definido implica, pois, a noção de uma estrutura constituída de uma série de relações entre unidades, sendo mantida a continuidade da estrutura por um processo vital constituído das atividades das unidades integrantes.
A função de determinado costume social é a contribuição que este oferece à vida social total como o funcionamento do sistema social total. Tal modo de ver implica que certo sistema social tem certo tipo de unidade a que podemos chamar de unidade funcional.
Podemos defini-lo como condição pela qual todas as partes do sistema social atuam juntas com suficiente grau de harmonia ou consistência interna, isto é, sem ocasionar conflitos persistentes que nem podem ser solucionados nem controlados.
Enquanto um organismo animal atacado por doença virulenta reagirá, e se a reação falhar, morrerá, uma sociedade que seja arrastada à condição de desunidade ou inconsistência funcionais não morrerá, exceto em casos relativamente raros, mas continuará a lutar no sentido de uma espécie de saúde social, e poderá, enquanto isto, alterar seu tipo estrutural.
A sociedade no curso de sua história pode e de fato muda seu tipo estrutural sem qualquer quebra de continuidade.
Vale ressaltar que o conceito de função tal como o definimos constitui uma “hipótese de trabalho”, pela qual certos problemas são formulados para estudo. Nenhum trabalho científico é possível sem a formulação de hipóteses de pesquisa.
Duas observações se impõem. Uma é que a hipótese não precisa ser assertiva dogmática de que tudo na vida de toda comunidade tenha função. Exige apenas a pressuposição de que pode ter uma, e que vale a pena investigá-la.
A segunda é que o que parece ser o mesmo costume social em duas sociedades pode ter funções diferentes nas duas. Em outras palavras, a fim de definir determinado costume social e a fim de tornar válidas as comparações entre os costumes de diferentes povos ou épocas, é necessário considerar não apenas a forma de costume, mas também sua função.
O ponto de vista “funcionalista” aqui apresentado implica, portanto, que tenhamos de investigar o mais completamente possível todos os aspectos da vida social, considerando-os uns em relação com os outros, e que parte fundamental da tarefa é a investigação do indivíduo e do modo pelo qual ele é modelado pela vida social ou ajustado a ela. Afinal, na sociedade humana, a estrutura social como um todo só pode ser observada em seu funcionamento.
Alguns aspectos da estrutura social, tais como a distribuição geográfica dos indivíduos e grupos, podem ser observados diretamente, mas a maior parte das relações sociais que na totalidade constituem a estrutura, tais como as relações de pai e filho, comprador e vendedor, governador e governado, não podem ser observados, a não ser nas atividades sociais nas quais as relações estão funcionando.
Não há, nem pode haver conflito algum entre a hipótese funcional e o parecer de que qualquer cultura, qualquer sistema social, seja o resultado final de uma série peculiar de acidentes históricos.
Uma “explicação” de determinado sistema social será sua história, se soubermos o relato minucioso de como e onde ele veio a ser o que é. Outra “explicação” do mesmo sistema obtém-se mostrando que ele é uma ilustração especial das leis da fisiologia social ou do funcionamento social.
Os dois tipos de explanação não conflitam, mas suplementam-se reciprocamente.
RADCLIFFE-BROWN, Alfred [1952]. Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Editora Vozes, 1973.
Parentesco e Relações Familiares
Em todas as sociedades, o parentesco é necessariamente bilateral. O indivíduo é relacionado a certas pessoas através de seu pai ou para com outros através de sua mãe, e o sistema de parentesco da sociedade revela o que seria o caráter de seu trato com os parentes paternos e maternos respectivamente.
Mas a sociedade tende a dividir-se em segmentos — grupos locais, linhagens, clãs, etc. — e quando o princípio da hereditariedade é admitido, como o é no mais das vezes, como o meio de determinar a comunidade de um segmento, então é preciso escolher entre descendência materna ou paterna.
Quando uma sociedade é dividida em grupos com uma norma de que os filhos pertencem ao grupo do pai, temos a descendência patrilinear, ao passo que, se os filhos sempre pertencem ao grupo da mãe, a descendência é matrilinear.
Há, infelizmente, grande liberdade no emprego dos termos matriarcal e patriarcal, e, por este motivo, muitos antropólogos recusam-se a empregá-los.
Uma sociedade pode ser chamada patriarcal, quando a descendência é patrilinear, isto é, os filhos pertencem ao grupo do pai; o casamento é patrilocal, isto é, a mulher muda-se para o grupo local do marido; a herança — ou propriedade — e a sucessão hierárquica são em linha masculina, e a família é patripotestal, isto é, a autoridade sobre os membros da família está nas mãos do pai ou seus parentes.
Por outro lado, uma sociedade pode ser chamada matriarcal, quando a descendência, herança e sucessão estão na linha feminina, quando o casamento é matrilocal, isto é, o marido muda-se para a casa de sua mulher, e quando a autoridade sobre os filhos é exercida pelos parentes da mãe.
Se aceita esta definição de termos contrários, é imediatamente óbvio que grande número de sociedades não são matriarcais nem patriarcais, embora algumas possam inclinar-se mais para um lado e outras para o inverso.
Assim, se examinamos as sociedades indígenas da Austrália oriental, que às vezes são chamadas matriarcais, descobrimos que o casamento é patrilocal, de modo que a comunidade do grupo local é herdada na linha masculina, a autoridade sobre os filhos está principalmente nas mãos do pai e seus irmãos e a propriedade é sobretudo herdada na linha masculina.
A única instituição matrilinear é a descendência do grupo totêmico, que é através da mãe, de modo que essas sociedades, longe de serem matriarcais, inclinam-se antes para o lado patriarcal. O parentesco entre eles é totalmente bilateral, mas para a maioria dos fins o parentesco através do pai é de mais importância que o parentesco através da mãe.
Há alguma evidência, por exemplo, de que a obrigação de vingar a morte recaia sobre os parentes da linha masculina ao invés de incumbir aos da linha feminina. Inclusive, achamos um interessante exemplo deste bilateralismo, se assim pode ser chamado, na África do Sul, na comunidade OvaHerero.
Os fatos não são muito seguros, mas tudo indica que esta comunidade é subdividida em duas séries de segmentos que se cruzam. Numa série — os omaanda — a descendência é matrilinear, enquanto o outro — otuzo — é patrilinear.
Uma criança pertence ao eanda de sua mãe e herda o gado dos irmãos de sua mãe, mas pertence ao oruzo do pai e herda seus espíritos antepassados. A autoridade sobre os filhos parece estar nas mãos do pai e seus irmãos e irmãs.
Está claro, assim espero, que a distinção entre sociedades matriarcais e patriarcais não é absoluta, mas relativa. Mesmo na sociedade mais acentuadamente patriarcal dá-se alguma importância social ao parentesco através da mãe; e, analogamente, na sociedade mais distintamente matriarcal o pai e seus afins são sempre de importância na vida do indivíduo.
Em resumo, a característica da maioria das sociedades que chamamos “tradicionais” — “originárias”, “indígenas”, “autóctones” — é que a conduta de indivíduos uns para com outros é muito amplamente regulada com base no parentesco, fruto este da formação de padrões fixos de conduta para cada parente ou relação de parentesco.
Isto por vezes está associado com uma organização segmentária da sociedade, isto é, com uma condição na qual toda a sociedade é dividida em certo número de segmentos — linhagens, clãs etc.
Enquanto o parentesco é sempre e necessariamente bilateral, ou cognado, a organização segmentária exige a adoção do princípio unilinear, e deve ser feita uma opção entre instituições patrilineares e matrilineares.
Em sociedades patrilineares de certo tipo, o esquema especial de conduta entre um filho da irmã e o irmão da mãe decorre do padrão de conduta entre o filho e a mãe, que é em si produto da vida social no seio da família no sentido restrito. Esta mesma espécie de conduta tende a estender-se a todos os parentes maternos, isto é, a toda família ou grupo a que o irmão da mãe pertença.
Nas sociedades com adoração de antepassados patrilinear, o mesmo tipo de conduta pode também ser estendido aos deuses da família da mãe.
O tipo especial de conduta para com os parentes maternos — vivos e mortos — ou para com o grupo materno e seus deuses e relíquias exprime-se em costumes rituais definidos, sendo a função ritual, no caso, como em outra parte, fixar e perpetuar certos tipos de conduta, com as obrigações e sentimentos nele implicados.
RADCLIFFE-BROWN, Alfred [1952]. Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Editora Vozes, 1973.