Racismo e Rebelião Estética
Num país como o Brasil, colonizado por europeus, os valores mais prestigiados e, portanto, aceitos, são os do colonizador. Entre estes valores está o da brancura como símbolo do excelso, do sublime, do belo. Deus é concebido em branco e em branco são pensadas todas as perfeições.
Na cor negra, ao contrário, está investida uma carga milenária de significados pejorativos. Em termos negros pensam-se todas as imperfeições. Se se reduzisse a axiologia do mundo ocidental a uma escala cromática, a cor negra representaria o pólo negativo.
São infinitas as sugestões, nas mais sutis modalidades, que trabalham a consciência e a inconsciência, desde a infância, no sentido de considerar, negativamente, a cor negra. O demônio, os espíritos maus, os entes humanos ou super-humanos, quando perversos, as criaturas e os bichos inferiores e malignos são, ordinariamente, representados em preto.
Não tem conta as expressões correntes no comércio verbal em que se inculca no espírito humano a reserva contra a cor negra. “Destino negro”, “lista negra”, “câmbio negro”, “missa negra”, “alma negra”, “sonho negro”, “miséria negra”, “caldo negro”, “asa negra” e tantos outros ditos implicam sempre algo execrável.
Ainda nas pessoas mais vigilantes contra o preconceito se surpreendem manifestações irrompidas do inconsciente em que ele aparece. Revelar a negrura em sua validade intrínseca, dissipar com o seu foco de luz a escuridão de que resultou a nossa total possessão pela brancura é uma das tarefas heroicas da nossa época. Pior do que uma alma perversa, dizia o escritor francês Charles Péguy, é uma alma habituada.
Nossa perversão estética não nos alarma ainda porque a repartimos com muitos, com quase todos: é uma lesão comunitária que passou à categoria de normalidade desde que, praticamente, a ninguém deixa de atingir. A ninguém? Não. Alguns se iniciaram já na visão prístina da negrura e se postam como noviços diante dela, isto é, emancipados do precário fastígio da brancura.
Purgado o nosso empedernimento pela brancura, estamos aptos a enxergar a beleza negra, beleza que vale por sua imanência e que exige ser aferida por critérios específicos. A beleza negra vale intrinsecamente e não enquanto alienada.
Há, de fato, exemplares de corpos negros, masculinos e femininos, que valem por si mesmos, do ponto de vista estético, e não enquanto se alteram ou se aculturam para aproximar-se dos padrões da brancura. Há homens e mulheres trigueiros, de cabelos duros e de outras peculiaridades somáticas e antropométricas, nos quais é imperioso reconhecer a transparência de uma autêntica norma estética.
A beleza negra não é, porventura, criação cerebrina dos que as circunstâncias vestiram de pele escura, espécie de racionalização ou autojustificação, mas um valor eterno, que vale ainda que não seja descoberto. Não é uma reivindicação racial o que confere positividade à negrura: é uma verificação objetiva. É assim, objetivamente, que pedimos para a beleza negra o seu lugar no plano egrégio.
Na atitude de quem associa a beleza negra ao meramente popular, folclórico, ingênuo ou exótico, há um preconceito larvar, uma inconsciente recusa de aceitá-la liberalmente. Eis por que é digna de repulsa toda atitude que, sob a forma de folclore, antropologia ou etnologia, reduz os valores negros ao plano do ingênuo ou do magístico. Num país de mestiços como o nosso, aceitar tal visão constitui um sintoma de autodesprezo ou de inconsciente subserviência aos padrões estéticos europeus.
A aculturação é tão insidiosa que ainda os espíritos mais generosos são por ela atingidos e, assim, domesticados pela brancura, quando imaginam o contrário. É o que parece flagrante na poesia de motivos negros. De ordinário, a negrura aí aparece subalterna, principalmente quando se focaliza a mulher, que é celebrada em regra, em termos puramente dionisíacos, como se neles se esgotasse a sua especificidade. Pondo a salvo o propósito generoso de tais poetas, nos refolhos de suas produções, surpreende-se, com frequência, o estereótipo: “branca pra casar, negra pra cozinhar, mulata pra fornicar!”.
Labora pela ocultação da negrura toda esta pátina de associações pejorativas e de equívocos sinceros que vestem nosso espírito e que precisam ser purgados mediante a reiteração, em termos egrégios dos valores negros.
A rebelião estética será um passo preliminar da rebelião total dos povos de cor para se tornarem sujeitos de seu próprio destino. Não se trata de novo racismo às avessas. Trata-se de que, até hoje, o negro tem sido mero objeto de versões de cuja elaboração não participa. Em todas estas versões se reflete a perspectiva de que se exclui o negro como sujeito autêntico. Autenticidade é a palavra que, por fim, deve ser escrita.
Autenticidade para o negro significa idoneidade consigo próprio, adesão e lealdade ao repertório de suas contingências existenciais, imediatas e específicas. E na medida em que ele se exprime de modo autêntico, as versões oficiais a seu respeito se desmascaram e se revelam nos seus intuitos mistificadores, deliberados ou equivocados.
O negro, na versão de seus “amigos profissionais” e dos que, mesmo de boa-fé, o vêem de fora, é uma coisa. Outra é o negro desde dentro.
RAMOS, Alberto Guerreiro [1954]. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.
Redução Sociológica
No domínio restrito da sociologia, a redução é uma atitude metódica que tem por fim descobrir os pressupostos referenciais, de natureza histórica, dos objetos e fatos da realidade social.
A redução sociológica, porém, é ditada não somente pelo imperativo de conhecer, mas também pela necessidade social de uma comunidade que, na realização de seu projeto de existência histórica, tem de servir-se da experiência de outras comunidades.
Pode a redução sociológica ser descrita nos seguintes itens.
1. É atitude metódica. É maneira de ver que obedece a regras e se esforça por depurar os objetos de elementos que dificultem a percepção exaustiva e radical do seu significado. Pretende ser o contrário da atitude espontânea, que não vai além dos aspectos externos dos fenômenos. A atitude natural não põe em questão aspectos diretos dos dados que lhe são oferecidos. A atitude metódica os “põe entre parênteses”, isto é, exime-se de toda afirmação ou aceitação desses aspectos, invertendo, por assim dizer, o processo ordinário da atitude natural.
2. Não admite a existência na realidade social de objetos sem pressupostos. A realidade social não é uma congérie, um conjunto desconexo de fatos. Ao contrário, é sistemática, dotada de sentido, visto que sua matéria é a vida humana. E a vida humana se distingue das formas inferiores de vida por ser permeada de valorações. Portanto, os fatos da realidade social fazem parte necessariamente de conexões de sentido, estão referidos uns aos outros por um vínculo de significação.
3. Postula a noção de mundo. Isto quer dizer que considera a consciência à luz da reciprocidade de perspectivas. O essencial da ideia de mundo é a admissão de que a consciência e os objetos estão reciprocamente relacionados. Toda consciência é intencional porque estruturalmente se refere a objetos. Todo objeto, enquanto, conhecido, necessariamente está referido à consciência. O mundo que conhecemos e em que agimos é o âmbito em que os indivíduos e os objetos se encontram numa infinita e complicada trama de referências.
4. É perspectivista. A perspectiva em que estão os objetos em parte os constitui. Portanto, se transferidos para outra perspectiva, deixam de ser exatamente o que eram. Não há possibilidade de repetições na realidade social. O sentido de um objeto jamais se dá desligado de um contexto determinado.
5. Seus suportes são coletivos e não individuais. O sociólogo chega à redução sociológica quando torna sua uma exigência de autoconformação surgida na sociedade em que vive. A redução sociológica é um ponto de vista que tem a consciência de ser limitado por uma situação e, portanto, é instrumento de um saber operativo e não da especulação pela especulação. Por aí se revela o caráter coletivo de seus suportes. Para que alguém apreenda e pratique a redução sociológica, carece viver numa sociedade cuja autoconsciência assuma as proporções de processo coletivo. A redução sociológica não é, portanto, em sentido genérico, primariamente um ato de lucidez individual. Fundamenta-se numa espécie de lógica material, imanente à sociedade.
6. É um procedimento crítico-assimilativo da experiência estrangeira. A redução sociológica não implica isolacionismo, nem exaltação romântica do local, regional ou nacional. É, ao contrário, dirigida por uma aspiração ao universal, mediatizado, porém, pelo local, regional ou nacional. Não pretende opor-se à prática de transplantações, mas quer submetê-las a apurados critérios de seletividade. Uma sociedade onde se desenvolve a capacidade de autoarticular-se, torna-se conscientemente seletiva. Diz-se aqui conscientemente seletiva, pois em todo grupo social há uma seletividade inconsciente que se incumbe de distorcer ou reinterpretar os produtos culturais importados, contrariando, muitas vezes, a expectativa dos que praticam ou aconselham as transplantações literais.
7. Embora os suportes coletivos sejam vivências populares, a redução sociológica é atitude altamente elaborada. A redução sociológica de um produto cultural, de uma instituição, de um processo, não se alcança senão recorrendo a conhecimentos diversos, principalmente de história. Consistindo em pôr à mostra os pressupostos referenciais de natureza histórico-social dos objetos, a pesquisa desses pressupostos leva a indagações complexas que só são efetivadas, com segurança, mediante estudo sistemático e raciocínio rigoroso. A atitude redutora não é modalidade de impressionismo. Para ser plenamente válida, no campo da ciência, precisa justificar-se, basear-se num esforço de reflexão, hábil para demonstrar, de modo consistente, as razões nas quais se fundamenta, em cada caso.
RAMOS, Alberto Guerreiro [1958]. A redução sociológica: introdução ao estudo da razão sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.